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28/02/2012 - 17:30:00

NUNCA MAIS

Entre a paz e a justiça

Para lidar com seu passado, em nome de uma suposta paz social, o Brasil recorreu à anistia em vez dos julgamentos. Agora, criação de Comissão da Verdade pode mudar essa história e evitar que anistia se transforme em amnésia e perpetue as injustiças

  • Revista Prisma
  • Por VANESSA NEGRINI

   

Como parte das negociações da reabertura política, pós-período ditatorial, o Brasil promulgou em 1979 sua Lei de Anistia, apostando no esquecimento como a forma mais adequada para consolidar o processo de pacificação. Trinta e dois anos depois, o país cria a sua Comissão da Verdade, para investigar as violações de direitos humanos desse período. Parentes de desaparecidos políticos esperam da Comissão o reconhecimento público e oficial de abusos cometidos, enquanto alguns setores militares temem uma caça às bruxas. Para o Brasil, essa é uma nova oportunidade de mostrar que a paz, a verdade e a justiça podem, sim, coexistir numa democracia.

 

No livro “A Anistia na Era da Responsabilização”, os pesquisadores Leich Payner, Paulo Abraão e Marcelo Torelly questionam se a anistia é a resposta apropriada para as atrocidades cometidas por governos ditatoriais. De acordo com eles, acadêmicos e profissionai que promovem a justiça de transição ao redor do mundo têm argumentado que Estados que saem de regimes autoritários possuem deveres legais, morais e políticos de responsabilizar individualmente os perpetradores de crimes contra os direitos humanos. Até mesmo para se evitar futuras violações e como forma de se restaurar a confiança nas instituições jurídicas e no Estado de Direito.

 

“Desde os Tribunais de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial, chegando até a criação do Tribunal Penal Internacional, o sistema internacional de direitos humanos tem buscado substituir a anistia pela justiça no que tange a violações de direitos humanos no passado”, enfatizam.

 

Na contramão da tendência global de responsabilização individual, em abril de 2010, em ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a Suprema Corte brasileira (STF) decidiu, por sete votos a dois, declarar válida a anistia para todos os crimes cometidos por agentes do Estado no Brasil durante a Ditadura. A posição do Brasil rendeu ao país uma condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

 

Em sentença na qual responsabiliza o Brasil pelo desaparecimento de cerca de 70 pessoas na chamada Guerrilha do Araguaia, o órgão declarou que a Lei de Anistia brasileira não pode seguir representando um obstáculo à investigação e à sanção de graves violações de direitos humanos. Nesse mesmo julgado, a CIDH também afirmou que a Comissão da Verdade “não substitui a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, por meio dos processos penais”.

 

Para o coordenador-chefe do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Ivan Luís Marques, uma vez que o Brasil ratificou o Pacto de San José da Costa Rica e submete-se à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “o STF não tem competência para rever o conteúdo das decisões internacionais que envolvem condenação de Estado”.

 

“O Brasil deve obediência às decisões da Corte Interamericana, não podendo fazer reanálise do mérito da decisão internacional, agindo como instância recursal”, afirma em capítulo no livro “Crimes da Ditadura Militar”.

 

Para ele, os crimes cometidos pelos agentes da ditadura – tortura e desaparecimento forçado de pessoas – são crimes contra a humanidade e se distinguem dos crimes políticos puros, pois a motivação política atingiu os bens jurídicos vida e integridade física. Dessa forma, os atos praticados durante a ditadura militar brasileira não podem ser acobertados pelo manto da anistia de 1979.

 

“São crimes contra a humanidade e, dessa forma, estão fora do alcance da Lei da Anistia e não prescrevem”, afirma Marques.

 

|JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO. A partir de 2007, o debate sobre “Justiça de Transição” ganhou corpo no cenário brasileiro. Como o próprio nome diz, a Justiça de Transição ocorre no contexto de transição pós regime autoritário. O objetivo é esclarecer as violações praticadas durante o período de exceção, além de construir parâmetros para as reparações individuais e coletivas, e pensar a reforma das instituições que cuidam da justiça e da segurança pública, incentivando a denominada cultura do “Nunca Mais”.

 

Em 2009, o direito à memória e à verdade tornou-se um dos principais eixos da política de Direitos Humanos no país. O movimento culminou com o lançamento da Comissão Nacional da Verdade no final do ano passado. Mas, para começar seus trabalhos, a Comissão depende ainda da indicação de seus membros pela presidente da República.

 

Em entrevista ao canal G1, representantes de militares e de entidades de familiares de mortos e desaparecidos durante a ditadura revelaram preocupação com a escolha dos integrantes que vão compor a Comissão da Verdade.

 

Para a presidente da União Nacional das Esposas de Militares das Forças Armadas, Ivone Luzardo, o “revanchismo do atual governo” só não tomará conta da Comissão da Verdade se houver a participação paritária de militares. “Quando não há participação dos dois lados, para mim, é comissão da meia verdade”, disse. A entidade teme que a investigação do passado venha a ser usada para “jogar a sociedade contra os militares” e cobra que também sejam investigadas as mortes de militares por guerrilheiros.

 

Para a vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, Vitória Grabois, que perdeu três parentes durante da ditadura, “não basta” buscar informações sobre violações de direitos humanos e o paradeiro de desaparecidos políticos. “Os arquivos da ditadura têm que ser abertos para que a gente saiba quem foram os responsáveis pelos crimes de tortura e assassinato, e essas pessoas precisam ser processadas e condenadas”, afirmou. No entanto ela defende que para haver imparcialidade, nem militar nem quem foi vítima da ditadura devem participar da Comissão.

 

Para o capitão Sebastião Pereira, diretor da Associação dos Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro, a Comissão não era necessária. “Houve uma anistia e isso deveria ter encerrado o assunto. Como querem exumar um defunto, é preciso garantir que se apurem os excessos também dos comunistas”, afirmou.

 

|PELO MUNDO. Das grandes ditaduras do Cone Sul, o Brasil é o último a investigar seus crimes cometidos pela ditadura, tarefa já cumprida na Argentina, Chile e Uruguai, países onde seus respectivos militares e torturadores já foram investigados e julgados. A cartilha “Comissão da Verdade no Brasil”, preparada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política/São Paulo, deixa claro o atraso brasileiro. No material consta que a primeira Comissão da Verdade da qual se tem notícias, foi instalada em Uganda, em 1974, sob o governo de Idi Amin, com o objetivo de investigar os desaparecidos durante os seus primeiros anos no poder.

 

Depois disso formaram-se Comissões da Verdade na Bolívia (1982); Argentina (1983); Uruguai e Zimbábue (1985); Chile e novamente em Uganda (1986); Nepal (1990); Chade (1991); Alemanha e El Salvador (1992); Sri Lanka (1994); Haiti e África do Sul (1995); Equador (1996); Guatemala e Nigéria (1999); Coreia do Sul e pela segunda vez no Uruguai (2000); Panamá, Peru e Iugoslávia (2001); Gana, Timor Leste e Serra Leoa (2002); novamente no Chile (2003); Paraguai, Marrocos, Carolina do Norte/ EUA e Congo (2004); Indonésia, Timor Leste e mais uma vez na Coreia do Sul (2005); Libéria (2006); novamente no Equador (2008); Ilhas Maurício, Ilhas Salomão, Togo, Quênia e Canadá (2009).

 

|JUSTIÇA E REPARAÇÃO. De acordo ainda com a cartilha do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo, embora a questão do processamento civil ou penal dos perpetradores das violências e abusos cometidos não seja um dos objetivos fundamentais das 39 Comissões da Verdade já instaladas pelo mundo, sabe-se que o relatório final das Comissões, em muitos países, foi usado como instrumento pela Justiça para desencadear as ações civis e/ou penais contra os perpetradores. Certamente, advém daí o temor e a resistência de setores militares brasileiros.

 

Embora tardia, a implementação de uma Comissão da Verdade é um passo importante para a definitiva superação da experiência autoritária no país. O momento pode servir para a promoção de uma ampla reflexão sobre as instituições da justiça e da segurança pública.

 

Uma lei não tem o poder reparador do esquecimento, como se supunha, pois as feridas continuam abertas. O caso brasileiro demostrou que a reconciliação com o passado só será plena por meio da tríade Verdade, Justiça e Reparação.

 

 


|AMPLA E IRRESTRITA. Assinada no governo João Baptista Figueiredo, a Lei 6.683 concedeu anistia a todos que cometeram crimes políticos, crimes eleitorais e aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, no período 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Na prática, proporcionou o retorno ao país de brasileiros exilados, com a extinção dos processos a que estavam respondendo e livrou os militares de responderem criminalmente por suas ações. Em novembro de 1979, os primeiros exilados começaram a voltar. A lei determinou que os anistiados pudessem requerer seu retorno ao serviço público no mesmo cargo ou emprego que ocupava na data de seu afastamento. Com a promulgação da Constituição, em 1988, o benefício da anistia atingiu os punidos entre 1946 e 1988 por motivos exclusivamente políticos. Em 2002, foi sancionada a Lei 10.559, fixando regras para a reparação econômica devida aos anistiados.

 

 

|NUNCA MAIS. As Comissões da Verdade são mecanismos oficiais de apuração de abusos e violações dos Direitos Humanos e vêm sendo amplamente utilizadas no mundo como uma forma de esclarecer o passado histórico. Seu funcionamento prioriza escutar as vítimas de arbitrariedades cometidas, ao mesmo tempo em que dá lugar a que se conheça também o padrão dos abusos havidos, por meio da versão dos perpetradores dessas violências ou da revelação de arquivos ainda desconhecidos. As Comissões da Verdade têm como missão final a produção de um relatório que permita à sociedade o conhecimento dos detalhes do regime que oprimiu e violou, assim como apresentam recomendações que visam aprimorar as instituições do Estado, notadamente aquelas que lidam com a segurança pública, e contribuir para uma política definitiva de não repetição. No Brasil, a Comissão terá duração de dois anos e será integrada por sete membros a serem designados pela presidente da República.

|PARA SABER MAIS

Crimes da Ditadura Militar
Org.: Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli
Ed.: Revista dos Tribunais
335 págs.,  Ano 2011,
Preço: R$ 69,00

A Anistia na Era da Responsabilização
Autor: Comissão de Anistia do MJ
542 págs.,  Ano 2011,
Disponível em
http://portal.mj.gov.br/
no link Anistia.

 

 


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