Vídeos Fotos Notícias

30/09/2012 - 10:20:46

ENTREVISTA

"O julgamento do mensalão será paradigmático para o combate à lavagem de dinheiro no país"

Em entrevista à Prisma, Márcio Anselmo, delegado federal e professor de Direito Penal, fala sobre o impacto das mudanças na legislação para o trabalho da Polícia Federal

  • Revista Prisma
  • Vanessa Negrini

   

|No Brasil, quais foram as principais inovações da nova lei contra a lavagem de dinheiro? Como era antes e como ficou agora?

A nova lei introduziu uma série de alterações na antiga (Lei n° 9.613/93), que há muito tempo precisava ser revista, sobretudo para atender às exigências de organismos internacionais, principalmente do GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional), que é a autoridade internacional no tema, fixando “recomendações” que devem ser adotadas pelos países, visando um tratamento uniforme do problema da lavagem de dinheiro.

A principal alteração é a extinção do rol dos crimes antecedentes, de maneira que a partir da vigência da nova lei, qualquer infração penal (e não apenas crimes - o que inclui também as contravenções penais) pode ser substrato material para o crime de lavagem de dinheiro.

Além dessa mudança, foi tipificado o crime de financiamento ao terrorismo, também outra exigência do GAFI que já havia sido objeto de críticas ao Brasil quando da avaliação do país pelo organismo. O rol de setores da atividade econômica obrigados a comunicar ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) operações atípicas ou suspeitas também foi expandido, incluindo novos setores como os contadores, as empresas de consultoria, transporte e guarda de valores, e mesmo setores como a comercialização e o agenciamento de atletas ou artistas.

|Como essas mudanças vão afetar especificamente o trabalho do delegado de polícia federal?

Essa área com certeza é a que mais tem sofrido com a anulação de operações na Polícia Federal, sobretudo por atingir setores “intocáveis” da sociedade. Há alguns anos, quem imaginava um banqueiro, como Edemar Cid Ferreira, sendo preso? Felizmente essa imagem tem mudado aos poucos, mas ainda há muito a ser feito. A autorização de acesso a dados cadastrais é um dispositivo que vai ser de grande ajuda no trabalho diário, não só das autoridades policiais que atuam diretamente com os inquéritos que investigam lavagem de dinheiro, mas de todos os que necessitem dessas informações nas investigações, uma vez que, antes da vigência da lei, como as empresas se recusavam a atender solicitações nesse sentido era necessário representar ao Judiciário solicitando a requisição, que encaminhava o pedido para manifestação do Ministério Público, e assim por diante, e nessa tramitação já se perdiam 6 meses de investigação.

O dispositivo que inseriu o afastamento do servidor público no caso de indiciamento também é uma mudança importante, que vem reforçar o papel do delegado de polícia e a importância da investigação criminal, permitindo assim que um servidor público, ao ser indiciado por crime de lavagem de dinheiro, possa ser afastado de suas funções.

Por outro lado, as ampliações no tipo penal a partir da nova lei vão se refletir quantitativamente sobre os inquéritos policiais e grande parte dos Estados não possuem estruturas apropriadas para lidar com essas investigações. A própria criação de DELEFINS (Delegacias de Crimes Financeiros) é algo anômalo na estrutura da Polícia Federal, pois até o ano passado, somente existiam nas Superintendências de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília e, nesse ano, foram criadas novas DELEFINS mas, ainda assim, não existem em todos os estados, o que inviabiliza em muito a estrutura. Além disso, por serem investigações via de regra de alta complexidade, exigem capacitação constante, que deve ser uma prioridade na área.

|A nova lei depende de alguma regulamentação para passar a valer? Por exemplo, como fica a questão da requisição de dados pela autoridade policial?

Apenas deverão ser regulamentadas a obrigações administrativas aos novos setores obrigados a reportar operações. A lei já está em vigor e as autoridades policiais já podem utilizá-la na requisição de dados cadastrais, conforme a mesma autoriza, o que deve garantir uma maior celeridade da obtenção desses dados.

|As mudanças foram suficientes ou ainda faltou abranger algum tema relevante?

Em minha opinião, os principais pontos que precisavam ser alterados foram contemplados na lei. Por outro lado, alguns terão difícil implementação, como por exemplo, o enquadramento da atividade consultiva de advocacia como obrigada a reportar operações suspeitas ou atípicas. Acredito que o nosso grande desafio aqui será a aplicação pelo Poder Judiciário, sobretudo na interpretação que será dada pelos tribunais superiores a pontos mais polêmicos. Recentemente, em decisão em habeas corpus, (HC 96007) o STF, numa interpretação absolutamente restritiva e sem fundamento, negou aplicação a um dos incisos da lei anterior, que tratava da lavagem de dinheiro de crime praticado por organização criminosa, sob o argumento de que não havia o tipo penal de organização criminosa e que, portanto, não havia conceito legal do que seria organização criminosa, desprezando que tal conceito se encontra na Convenção de Palermo, devidamente internalizada no Brasil e com força de lei. Assim, resta saber como se dará a aplicação da lei, uma vez que, no que tange à lei atual, por exemplo, são pouquíssimos os casos de condenação com sentença transitada em julgado. E esse problema foi apontado quando da avaliação do Brasil pelo GAFI. Embora a demora seja uma característica de nosso sistema judiciário como um todo, não apenas no que tange à lavagem de dinheiro, mas tal problema carece de uma solução urgente.

|No julgamento do mensalão no STF alguns réus foram condenados por lavagem de dinheiro. A nova lei se aplica a eles? Qual seria a punição pela nova lei?

O julgamento do mensalão com certeza vai ser paradigmático para o combate à lavagem de dinheiro no país. É um momento histórico na justiça brasileira. Nesse julgamento, muitas questões de fato estão sendo colocadas em discussão no plenário do Supremo, que até então não havia se pronunciado diretamente sobre elas, uma vez que nos julgamentos em que se pronunciou anteriormente apenas tratava de teses jurídicas. A nova lei não se aplica a esse julgamento, tendo em vista a regra de que a lei penal não retroage, salvo em benefício do réu.

|Explique como é o modus operandi de quadrilhas que lavam dinheiro no Brasil.

Há vários modus operandi de lavagem de dinheiro no Brasil, que são conhecidos como tipologias. Eles vão depender das circunstâncias, do grau de especialização do grupo, e até da origem do dinheiro a ser lavado. Como a corrupção é um forte do nosso sistema, muito se utiliza da falsa prestação de serviços, como por exemplo, de consultoria, para lavagem de dinheiro nesse setor, justificando assim faturamentos irreais. Vários são os exemplos recentes dessa modalidade de utilização. A figura dos laranjas é utilizada com frequência. Os paraísos fiscais também continuam no topo, como um “porto” relativamente seguro, apesar de fortes iniciativas internacionais no sentido de evitar essa prática, sobretudo obrigando a transparência desses regimes, como tem ocorrido com a Suíça, por exemplo, que luta para perder esse estigma, sobretudo tornando-se mais aberta à cooperação. Mas a criatividade nesse sentido é grande e sempre serão identificadas novas formas, que acompanham, sobretudo, as inovações tecnológicas e novos produtos no mercado. Velhas fórmulas se reciclam e os órgãos de persecução devem estar cada vez mais atentos a cada novo produto do mercado, principalmente financeiro, como por exemplo, o Paypal, os sites de comércio eletrônico, etc. São estruturas que podem ser utilizadas, mediante técnicas acuradas, para a lavagem de dinheiro.

|Qual a importância de se combater esse tipo de crime?

Embora as discussões quanto ao bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro sejam acirradas na doutrina, tanto nacional quanto internacional, creio que a importância aqui está fundamentalmente na regra de se combater o crime organizado pela sua descapitalização. Há muito tempo a pena de prisão já se encontra em decadência. No caso dos crimes de lavagem de dinheiro e demais crimes do chamado “direito penal econômico” ou ainda os “crimes de colarinho branco”, geralmente se atingem setores da sociedade que desfrutam de alto status social, que possuem plena consciência da ilicitude de suas condutas. Somente com o ataque ao que esse nicho da criminalidade tem de maior valor, que é o benefício auferido com o crime, é que será possível enfrentar esse tipo de criminalidade. Isso já era objeto das lições do Dr. Getúlio Bezerra há 10 anos, quando cursei a Academia Nacional de Polícia.


Faça login no Espaço do Associado para dar sua opinião e ler os comentários desta matéria.

REDES SOCIAIS


Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal
SHIS QI 07 conj. 06 casa 02 - Lago Sul
Brasília/DF - CEP 71.615-260
Central de Atendimentos: 0800.940.7069