Vídeos Fotos Notícias

31/07/2013 - 17:01:42

MEMORIA VIVA

Visão Capitalista da repressão ao crime organizado

Getúlio Bezerra foi quem cunhou a expressão que se notabilizou na Polícia Federal e até hoje é repetida por policiais de todas as gerações

  • Revista Prisma
  • Elijonas Maia

   

A questão do crime organizado começou a ser discutida na área de repressão a entorpecentes, nos cursos de formação da Academia Nacional de Polícia (ANP), onde o tema era apenas um módulo da disciplina “PRE - Polícia de Repressão a Entorpecentes”. Foi a partir dos anos 80, que o tema crime organizado começou a se fortalecer e se tornou uma disciplina própria na Academia. A matéria abrangia várias outras modalidades de crimes praticados por organizações criminosas, como o contrabando e a lavagem de dinheiro.

Para contar essa trajetória, a revista Prisma traz uma entrevista histórica. Com a experiência de quem viveu cada etapa, o primeiro diretor de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal, delegado Getúlio Bezerra Santos, relata a evolução das técnicas de repressão a esse tipo de crime desde 1990 até os dias de hoje.

Em razão de obrigações assumidas pelo Brasil em convenções internacionais e acordos de cooperação, o enfrentamento ao crime organizado pela Polícia Federal nasceu com a repressão ao tráfico de drogas. Com a intensificação dos intercâmbios com outros países e por meio de treinamentos internacionais oferecidos à Polícia Federal foi possível a qualificação dos profissionais e acesso às doutrinas de ponta.

A partir dessa janela aberta para o mundo, um segmento da corporação passou a conhecer novas estratégias e aplicá-las, priorizando os trabalhos de inteligência, a descapitalização dos grupos criminosos, a investigação financeira e o controle de produtos químicos.

Outra estratégia foi a adoção do princípio da seletividade. A Polícia Federal passou a concentrar o foco das investigações dos grandes grupos, por meio da identificação das fontes de produção das drogas e distribuição no atacado.

|HISTÓRICO. O delegado Bezerra conta que na década de 90, a Polícia Federal criou, informalmente, no âmbito da Fazendária, uma unidade de inquéritos especiais para apurar os casos de maior complexidade praticados por grupos criminosos organizados, notadamente aqueles contra a administração pública, lavagem de dinheiro e o sistema financeiro. O esquema PC Farias, por exemplo, foi investigado nessa unidade, que se tornou embrião da atual Diretoria de Combate ao Crime Organizado, criada na administração Paulo Lacerda.

A nova estrutura criada alcançava além da repressão ao tráfico de drogas, os crimes de lavagem de dinheiro, tráfico de armas e crimes contra o patrimônio, que abrange roubo de cargas e assalto a bancos.

Até então, na parte operacional, a Polícia Federal era dividida nas áreas de contrabando, crimes contra a Fazenda, drogas, imigração e o Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

“Nessa época, começou a se falar muito em intercâmbio, em que a Polícia Federal recebia apoio do exterior para cursos de capacitação com ingleses, franceses, alemães e, principalmente, americanos”, conta Bezerra.

Em uma palestra no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no ano de 1998, Bezerra declarou que, até a Constituição de 88, no Brasil não havia nenhum dos instrumentos de investigação recomendados nas convenções internacionais, já utilizados por outros países, o que dificultava sobremaneira a atuação da PF.

“A gente só tinha o mandado de busca, previsto no Código de Processo Penal, da década de 40. Não tínhamos a entrega controlada, infiltração, interceptação telefônica, nem a lei de repressão à lavagem de dinheiro”, lembra o delegado.

Em comparação com os dias de hoje, Bezerra é enfático. “Temos praticamente todos os instrumentos para uma repressão eficaz, notadamente após a aprovação pelo Congresso do PLS-150/2006, que aguarda sanção presidencial. A partir desses instrumentos consolidados na nossa legislação, é preciso que a Polícia Judiciária empregue maior ênfase à técnica de investigação financeira, para permitir o confisco dos bens dos grupos criminosos, consolidando a doutrina da visão capitalista da repressão”, aponta.

“Outra técnica que merece ser utilizada com mais assiduidade é a entrega controlada e as operações encobertas, dentro do território nacional, uma vez que ainda somos muito mais solicitados a empregar essa técnica por países estrangeiros”, ressalta.

Nessa altura, já se tinha a percepção que o crime organizado voltado para o tráfico de entorpecentes era um crime diferente, profissional, grave e que buscava lucro. O combate à lavagem de dinheiro também teve início nessa época. Foi quando o delegado Bezerra começou a difundir a ideia da “visão capitalista de repressão ao crime organizado”, que consiste em reverter os bens apreendidos dos grupos criminosos, em favor das atividades de repressão.

“Era preciso descapitalizar o crime que visa lucro para poder combatê-lo”, explica Getúlio Bezerra. O ensinamento se notabilizou, tomou corpo, e se tornou uma doutrina operacional aplicada pelos delegados daquela época e os da nova geração.

Isso significa que esses recursos servirão para o financiamento de novas ações de repressão e reaparelhamento das agências responsáveis pela aplicação da lei.

“É lançar mão, legalmente, dos valores ilícitos e revertê-los contra o próprio crime”, explica.

Isso significa desonerar o Estado do financiamento da repressão, que passa a ser custeada, em parte, pelo próprio crime, liberando parcela significativa de recursos públicos para investimento em setores essenciais à sociedade como saúde, educação e transporte. Essa técnica investe, também, na recuperação de dependentes em drogas e equipamentos para a PF. O dinheiro do crime ganha um fim social.

|VIRADA. Segundo Bezerra, foi a partir de 2000 que se deu o grande salto da Polícia Federal para o enfrentamento do fenômeno da criminalidade organizada. Com a promulgação da Convenção de Palermo da Organização das Nações Unidas (ONU - 2000) para repressão ao crime organizado, o Brasil foi um dos primeiros signatários.

Estabeleceu-se então uma série de recomendações para adequação das legislações nacionais e, por consequência, também das estruturas organizacionais das agências de repressão.

Enquanto se encaminhava o processo legislativo de retificação da Convenção, a Polícia Federal, a administração do então diretor-geral Paulo Lacerda (2003 a 2007) modificou radicalmente sua estrutura com a criação da Diretoria de Combate ao Crime Organizado. A nova estrutura incorporou a unidade especializada à repressão ao tráfico de drogas e produtos químicos, as unidades de investigação financeira para o combate à lavagem de dinheiro, a repressão ao tráfico de armas e de repressão aos crimes contra o patrimônio. Essa última com foco especial na repressão de crime de repercussão interestadual, notadamente os assaltos a banco e roubos de carga.

|RECEITA. Para o delegado Bezerra, “não existe improvisação, nem experiências exóticas”. O Brasil segue na tendência universal de estratégias já consolidadas e recomendadas em convenções internacionais. Ou seja, priorizar a investigação contra os grupos criminosos organizados de maior potencial ofensivo, por meio de atividades permanentes de inteligência, com ênfase especial à investigação financeira. Isso de modo a permitir a descapitalização dos grupos, que é “o golpe mortal para as estruturas ilegais”.

Os fundamentos da estratégia da Polícia Federal de enfrentamento ao crime organizado seguem o consenso universal adotado nas principais escolas de repressão ao crime organizado no mundo.

Getúlio Bezerra explica que, basicamente, é focado no instituto da cooperação entre países e, especialmente, entre os distintos níveis de agências nacionais de persecução criminal.

A própria Convenção de Palermo recomenda aos países signatários a criação de normas que facilitem a organização de equipes conjuntas de investigação para repressão aos crimes transnacionais.

|COMBATE. Segundo Bezerra, a medida mais eficaz para o enfrentamento aos grupos criminosos organizados é, sem dúvida, o confisco de bens e valores obtidos pelas atividades ilegais.

“Para se chegar a esse objetivo é preciso uma investigação financeira criteriosa, obrigatória, oferecendo assim instrumentos à Justiça para a aplicação da legislação do confisco de bens”, explica. O resultado é o desestímulo ao principal foco dos grupos organizados: a ganância por lucros.

Uma das técnicas recomendadas pela Convenção de Palermo, já utilizada é a “entrega controlada”. Na legislação brasileira foi recepcionado como uma “ação controlada”.

Consiste na não intervenção da polícia - autorizada pela Justiça - contra ações praticadas por grupos criminosos  mantendo o controle e vigilância até o momento oportuno para intervenção. Assim serão identificados mais criminosos, de maior nível, participantes da organização criminosa. A lei brasileira se presta para qualquer tipo de delito, desde o tráfico de drogas, contrabando, moeda falsa, ao tráfico de pessoas.

A nova lei de lavagem de dinheiro trouxe instrumentos mais eficazes para repressão aos grupos criminosos. Eliminou a lista de crimes antecedentes, ampliou também o número de entes que passam a ter obrigação de prestar informações ao COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras sobre operações suspeitas praticadas por seus clientes.

Considerando a dinâmica do crime, para uma repressão eficaz, Bezerra recomenda o aperfeiçoamento das estruturas das agências de aplicação da lei e a capacitação especializada dos quadros.

Outro ponto dominante das estratégias mundiais é a integração das agências de polícia, inteligência, fiscalização e controle de todos os níveis, de modo a não deixar espaço para a atuação das organizações criminosas.

Por último, se deve manter uma postura vigilante com relação à adequação da legislação às recomendações das convenções internacionais. Para tanto não é preciso recurso, caso contrário já estariam comprometidas com o poder econômico, segundo o delegado.

 

 


Faça login no Espaço do Associado para dar sua opinião e ler os comentários desta matéria.

REDES SOCIAIS


Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal
SHIS QI 07 conj. 06 casa 02 - Lago Sul
Brasília/DF - CEP 71.615-260
Central de Atendimentos: 0800.940.7069