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31/12/2013 - 10:24:49

ESTUDO

Delegada investiga o fenômeno do suicídio entre os policiais federais

  • Revista Prisma
  • Vanessa Negrini

   

IESTUDO

O suicídio é um ato complexo - difícil de compreender e aceitar -, em consequência do colapso das esperanças, planos e expectativas pessoais, familiares e sociais. É preocupante imaginar que os policiais, geralmente vistos como profissionais frios, fortes, muito bem equipados e vivendo em perigo frequente, prontos para todas as situações, sejam capazes de um ato tão extremo. Embora a profissão de policial esteja ligada ao uso legítimo da força, a ocorrência de mortes voluntárias, entre estes profissionais é significativa, considerando ser esta uma população testada, psicologicamente e fisicamente.

A delegada federal Tatiane da Costa Almeida acaba de defender sua dissertação de mestrado em Sociologia, no Instituto Universitário de Lisboa, na qual abordou as representações sociais da polícia e do suicídio entre os alunos dos cursos de formação profissional da Academia Nacional de Polícia. A pesquisa visa analisar as percepções do suicídio entre os futuros policiais federais brasileiros. Para tanto, ela entrevistou 434 recrutas da Academia Nacional de Polícia, de ambos os sexos, com idades entre 21 e 49 anos.

Conforme a delegada, em 2011, o Brasil registrou uma taxa de suicídio de 4,3 por 100 mil habitantes. Na Polícia Federal, a proporção foi de 12 suicídios para um efetivo de aproximadamente 13 mil servidores, em 2012. Estes números podem ser ainda mais graves, caso se incluam as mortes por causas não esclarecidas e as tentativas de suicídio. Assim o estudo é de grande valia para programar meios de prevenção e políticas de gestão de pessoal, adequadas à preservação da saúde mental dos membros da polícia.
Para Almeida, era de se esperar que a ocorrência de suicídio entre policiais tivesse uma taxa menor que a da população em geral, dado se tratar de um grupo de pessoas empregadas e bem preparadas. No entanto, pesquisadores revelam que a incidência do suicídio nos elementos policiais tem vindo a aumentar a nível mundial. Alguns chegam mesmo a afirmar que os policiais que se matam são em maior número do que aqueles que são mortos por terceiros.

No Brasil ainda se carece de uma cultura voltada para a pesquisa do fenômeno, incluída ai a produção de estatísticas e programas de prevenção.

Nesse sentido, o trabalho da delegada Tatiane assume uma importância ainda maior, pois falar do problema significa colocá-lo numa posição de destaque e debate, tanto na academia, quanto na organização policial, desmistificando a noção de que o problema deve ficar camuflado, a fim de evitar um “contágio”, ou para manter a imagem invulnerável da instituição e dos seus quadros. Nas próximas páginas, segue um resumo dos principais pontos abordados pela dissertação:

|CULTURA POLICIAL. Para realizar suas atribuições, se impõem ao policial o estabelecimento de “óculos cognitivos” e uma “personalidade de trabalho”, caracterizada por “traços partilhados por todos”, como a suspeita em relação ao outro; o isolamento social, compensado por uma solidariedade interna muito forte. Assim, para o estudo do fenômeno do suicídio policial é fundamental focar o fator isolamento e a solidariedade interna.

Outra característica central da cultura policial é um sentido de missão, o qual decorre do sentimento de que o policiamento é, não apenas um trabalho, mas um meio de vida com um propósito útil. Ocorre que, com o passar do tempo, ao serem solicitados para inúmeras situações de miséria humana, e um número excessivo de demandas que não conseguem resolver, os policiais podem sentir-se frustrados/impotentes, e distanciarem-se, adotando uma visão cínica da realidade. Esses sentimentos - reforçados pela exposição a situações degradantes, como violência, morte e abuso sexual - leva o policial a se proteger, por exemplo, abusando do álcool ou adotando uma postura fria, como reflexo do mecanismo de defesa do ego, que busca a negação de realidades dolorosas para evitar sentimentos de ansiedade.

A própria natureza da atividade - que exige objetividade e despersonalização - implica muitas vezes o trabalho em regime de plantão, o que contribui para o isolamento, na medida em que impede o policial de tomar parte nas atividades normais e rotineiras. No mesmo sentido, a solidariedade interna, sendo uma forma de compensar o isolamento, assume uma importância vital entre os policiais. Ela decorre da necessidade de ser capaz de confiar nos colegas em uma situação difícil, e uma armadura protegendo a força como um todo, para que o público não conheça suas infrações.

Por um lado o policial é compelido ao papel social ditado pela organização formal - preocupada em manter a imagem de uma organização que funciona e em que os membros marcham “como um homem só” - sob pena de sofrer penalidades disciplinares. Por outro, deve obedecer às exigências da cultura informal, sob pena de sentir-se excluído pelos seus pares. O problema é que, em geral, as culturas formal e informal estão em oposição nas organizações policiais. Daí o policial viver em constante conflito, para se equilibrar entre as prescrições da cultura policial formal e informal, e o seu papel como indivíduo. Não é de estranhar que o policial se veja invadido por sentimentos ambivalentes em relação ao público, à instituição, aos seus colegas, à sua família e amigos, e ao seu próprio trabalho, que ele ama e odeia.

|EXPECTATIVA. Saídos da Academia, grande parte dos novatos tende a achar o trabalho excitante, a princípio, e viciar-se na adrenalina da profissão, desenvolvendo uma dependência fisiológica e social, que modifica a forma de o policial interagir com o meio. Assim, adaptados à excitação e ao perigo, tendem a ficar deprimidos em períodos normais ou de calma, sentindo-se desinteressados e desconectados com tudo que não se relaciona ao trabalho policial. Ocorre que a atividade policial nem sempre é tão empolgante como se supõe - ao contrário é cheio de tédio e burocracia com os quais o policial tem de lidar, nem sempre com satisfação.

O sentido messiânico da profissãofaz com que o policial se veja como salvador da sociedade, separado dos demais por uma “tênue linha azul”, o que reflete um superego muito crítico, passível de se voltar fortemente contra o ego quando o indivíduo incorre em uma falta. Em casos assim, o suicídio pode ocorrer.

Os suicídios cometidos por policiais envolvidos em processos disciplinares também encontram justificativas teóricas. Ao contrário do que se poderia supor, o policial nesta situação está agindo não somente com a intenção de garantir o sustento da sua família (pensão), que a possível pena de demissão obstaria, mas, também, buscando uma forma de punição, porque ainda que corrupto e desonesto, ele está socializado no papel de policial, sendo influenciado por todas as categorias morais relacionadas.

Os policiais têm dificuldades com seus problemas pessoais, pois tendem a escamotear as emoções. Quando um indivíduo vivencia problemas (graves) a pelo menos dois de três níveis - pessoal, familiar e social – a possibilidade de se sentir perturbado aumenta, bem como é maior o risco de tentativa de suicídio.

O trabalho de um policial exige, de algum modo, uma despersonalização nos relacionamentos interpessoais. Ele deve atuar sem demonstrar emoção, bem como colocar uma barreira que o proteja da miséria humana que é obrigado a testemunhar. Porém, mesmo quando não estão de serviço, os policiais têm dificuldade de religar suas emoções, o que resulta no estabelecimento de relações pessoais um tanto impessoais, já que estas demandam emoções que ele tem dificuldade de vivenciar.

|FATOR DE RISCO. O acesso a arma 24 horas por dia aumenta o fator de risco. Enquanto a polícia armada de Nova York se mata duas vezes mais que a população geral, a polícia metropolitana de Londres desarmada tem as mesmas taxas da população em geral. Ora, se o ato suicida é impulsivo, e o policial não precisa de se esforçar muito para encontrar meio de se matar, é evidente que o porte de arma de fogo é um fator de risco. Destaque-se ainda que, aparentemente e em razão do simbolismo que a arma tem para cada policial, este é o meio preferido para o gesto suicida.

No entanto, o fator mais importante, pela própria natureza da Polícia Federal, é a questão do isolamento dos seus membros, já que se trata de uma polícia nacional em um país de dimensões continentais. O processo de isolamento já começa no recrutamento. Os futuros policiais, alunos da Academia Nacional de Polícia, são submetidos a um regime de semi-internato, por no mínimo por três meses, durante os quais devem pernoitar nos alojamentos da Academia, podendo sair apenas nos finais de semana. Como a Academia fica em Brasília, a maioria dos alunos não está entre seus familiares e amigos. Assim, o policial federal já é desde o curso de formação, isolado e desintegrado.
Recém-formados, os recrutas são geralmente lotados nas localidades de difícil provimento, regiões de fronteiras, norte e centro-oeste, para depois retornarem, após ansiosa espera, a suas origens, geralmente nos grandes centros urbanos. Certamente o policial deslocado sofre os efeitos do isolamento, da desintegração numa comunidade que não é a sua, e da solidariedade interna, que diante da distância de seus amigos e familiares, será ainda mais notável.

Ademais, tratando-se de umainstituição de âmbito nacional, a PF terá forçosamente um efetivo de policiais em constante deslocação, uma vez que a demanda de serviço está, por vezes, localizada em regiões que não possui número suficiente de policiais fixos alocados. Com frequência, a realidade comum da Polícia Federal é de viagens e missões, o que certamente contribui para a existência de problemas familiares e a desintegração do policial com o resto da sociedade.

|RESULTADOS. A pesquisa empírica se constitui na aplicação de questionários aos alunos da ANP, a fim de que expressassem seus sentimentos, pensamentos e emoções sobre temas relacionados à profissão e o suicídio. Analisadas as respostas, as dimensões significativas encontradas para as razões para a escolha da profissão, por ordem de importância, foram o “dinamismo da profissão”, “altruísmo”; “autoridade” e motivos “práticos”. Para o suicídio, encontrou-se “mal-estar”; “desesperança”; “debilidade” e “fuga”.

É importante destacar que entre os itens associados ao suicídio com médias mais elevadas, encontrou-se: depressão; desespero; morte; infelicidade; baixa autoestima; tristeza; problemas; desamparo; solução; solidão; sofrimento. É preocupante o fato de que os policiais federais recésaídos da Academia Nacional de Polícia (ANP) estão sujeitos a muitos desses sentimentos, isolados nas lotações inóspitas no norte e nas fronteiras do Brasil. Chama a atenção especialmente a relação entre suicídio, solidão e solução.

|RECOMENDAÇÕES. Como as dimensões mais relevantes para a escolha da profissão encontradas nesta pesquisa foram dinamismo e altruísmo, é fundamental que a Polícia Federal atente para os anseios dos seus futuros quadros, os quais podem tornar-se decepcionados ao encararem a realidade da burocracia que também faz parte do mundo da polícia. Para tanto, os alunos podem ser orientados, desde a sua formação, sobre os aspectos menos aventureiros da profissão. É Igualmente necessário refletir sobre a organização do trabalho na Polícia Federal, a fim de garantir autonomia, para que os policiais possam sentir-se úteis e capazes de ajudar as pessoas e combater a criminalidade.

O excesso de trabalho e a falta de recursos materiais adequados, a toda evidência, atrapalha esse processo, fomentando policiais cínicos diante da incapacidade de lidar com a demanda de tarefas que são chamados a resolver. Isso acaba provocando, como discutido anteriormente, um desligamento das emoções, e consequente dificuldade de relacionamento e isolamento social, fatores de risco para o cometimento de tentativas de suicídio.

Ante a inevitabilidade da Polícia Federal estar presente em toda e extensão do território nacional, a reflexão sobre os prejuízos para a saúde mental dos servidores é uma pauta importantíssima, bem assim como a questão das viagens e missões policiais, que põem em causa a estabilidade dos relacionamentos pessoais, como um todo.

Destaque-se a necessidade de rediscutir as habilidades desejáveis para os quadros da Polícia Federal. Se os perfis profissiográficos privilegiam dimensões como agressividade e controle emocional numa profissão sujeita a fragilidades como solidão, problemas pessoais e constrição cognitiva, é de se indagar se a polícia é lugar ideal para os que se enquadram nesse perfil.


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