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23/01/2015 - 12:26:22

ARTIGO

"A audiência de custódia (PLS nº 554, de 2011) e sua interpretação conforme a Constituição Federal e os Tratados de Internacionais Sobre Direitos Humanos"

Confira o artigo do Delegado de Polícia Civil Thiago Frederico de Souza Costa

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  • Thiago Frederico de Souza Costa

   

Muito se tem falado sobre audiência de custódia, muitos antevendo na medida a solução para o elevado número de presos provisórios e o fim de todas as formas de violações aos direitos dos presos.


Na esteira desse debate, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado – PLS nº 554, de 2011, de iniciativa do Excelentíssimo Senador Antônio Carlos Valadares, que objetiva alterar o art. 306 do Código de Processo Penal, instituindo a obrigatoriedade de apresentação de todos os presos ao juiz no prazo de 24 horas após a prisão, segundo de depreende do texto original do projeto, que pedimos vênia para transcrevê-lo abaixo, in verbis:


“§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.”


No Estado de São Paulo uma estratégia mirabolante vem sendo planejada para por em prática a panacéia.


O ponto comum entre o PLS nº 554, de 2011, e os defensores da audiência de custódia está na tese de que tratados internacionais de direitos humanos não estariam sendo cumpridos pelo Brasil.


Analisando sob o ponto de vista dos tratados internacionais sobre direitos humanos, o Brasil é, de fato, signatário do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, da Organização das Nações Unidas, cujo item 03 do art. 09 dispõe da seguinte forma, verbis:


ARTIGO 9


“3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.” (Sem grifo no original)


No mesmo diapasão, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), dispõe de forma semelhante no item 05 do art. 07, vejamos:


ARTIGO 7


“5. Toda pessoa detida ou retira deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito […] a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” (Sem grifo no original)


Da simples leitura se depreende que os normativos citados são claros ao orientar que o detido deve ser conduzido sem demora à presença de um juiz ou “outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”.


Não há, como se percebe, a obrigatoriedade alegada de apresentação do detido exclusivamente ao juiz, porquanto, se a intenção fosse essa, os tratados referidos teriam mencionado a expressão outra autoridade judiciária ou então simplesmente nada mencionariam, visto que não haveria de se falar em qualquer outra autoridade senão o juiz.


Para que não reste dúvida, a Resolução nº 43/73, da Assembleia Geral, de 9 de dezembro de 1988, da Organização das Nações Unidas, define a expressão outra autoridade como “outra autoridade estabelecida nos termos da lei cujo estatuto e mandato ofereçam as mais sólidas garantias de competência, imparcialidade e independência”.


Analisando esse conceito sob a ótica do ordenamento jurídico interno, percebe-se que a lei maior da República instituiu o cargo de delegado de polícia como dirigente das Polícias Civis, sendo, portanto o titular das funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, nos termos do no §4º do art. 144, da Constituição Federal.


Nesse sentido, o delegado de polícia é a autoridade autorizada pela Constituição Federal e por diversas leis federais a exercer atipicamente funções tipicamente judiciais, mesmo não integrando o Poder Judiciário, o fazendo, por exemplo, quando arbitra fiança como condição para concessão da liberdade do preso em flagrante, quando apreende um bem relacionado ao crime, quando homologa a prisão em flagrante e determina o recolhimento do conduzido à prisão ou quando promove o indiciamento, ato que se reveste das mesmas formalidades das decisões judiciais, nos termos do § 6º, do art. 2º, da Lei Federal nº 12.830, de 20 de junho de 2013, verbis:


“O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.


Podemos citar diversos outros dispositivos legais que habilitam o delegado de polícia a exercer tais funções. Basta notar que o ingresso no cargo de delegado de polícia federal possui requisitos semelhantes aos exigidos pela Constituição Federal para ingresso na magistratura, nos termos da Lei nº 9.266/96 , alterada pela Lei nº 13.047/2014.


Em razão de suas funções, definidas por lei como de natureza jurídica e privativas de bacharel em Direito, o delegado goza de estabilidade funcional decorrentes do exercício de cargo público essencial e exclusivo de Estado, sendo-lhe deferidas garantias que conferem segurança jurídica para atuar com imparcialidade e autonomia.


Para exemplificar, o § 4º do art. 119 da Lei Orgânica do Distrito Federal estabelece que “aos integrantes da categoria de delegado de polícia é garantida independência funcional no exercício das atribuições de Polícia Judiciária”.


A Lei nº 12.830/2013, por sua vez, estabelece regras que garantem a autonomia do delegado de polícia em sua atividade, tais como a exigência de despacho fundamentado com base no interesse público ou descumprimento de normas regulamentares para que o inquérito possa ser avocado (art. 2º, §4º); a necessidade de fundamentação para que o delegado possa ser removido de sua lotação (art. 2º, §5º); a previsão de que o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia (art. 2º, §6º); além de lhe ser deferido o mesmo tratamento protocolar dispensado a magistrados, promotores e advogados (art. 2º, §7º).


Várias Constituições Estaduais, inclusive a Constituição do Estado de São Paulo, também ratificam a natureza jurídica do cargo de delegado de polícia.


Podemos concluir que, nos termos dos tratados acima mencionados, o delegado de polícia é, ao lado do juiz, a autoridade habilitada a primeiro tomar conhecimento da prisão e decidir sobre sua legalidade.


Se alguma dúvida ainda resta, a Constituição Federal vem ao amparo e deixa tudo definitivamente esclarecido.


Quando restringe determinado ato à reserva de jurisdição, a Constituição Federal o faz claramente, como no inciso LXI do art. 5º, ao dispor que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.


Como se nota, a prisão em flagrante delito não está sujeita à reserva de jurisdição.


Corroborando esse entendimento, o inciso LXII do art. 5º da Carta Magna estabelece que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”, não impondo a apresentação imediata do preso nem ao juiz nem à família, que, está claro, devem ser comunicados imediatamente.


Da mesma forma, o inciso LXIV do art. 5º da Constituição dispõe que “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”.


Percebe-se que as normas constitucionais servem ao mesmo tempo de autorização constitucional para que o delegado de polícia seja o primeiro a decidir sobre a prisão e exercer atipicamente atos tipicamente judiciais, como o interrogatório e a prisão em flagrante; e garantia do preso para que tenha ciência sobre a identidade de quem o prendeu e da autoridade de polícia judiciária responsável pela análise da legalidade do ato que restringiu sua liberdade.


E não há nisso nada de surpreendente ou que fomente qualquer questionamento sobre a validade das referidas normas constitucionais, visto que são fruto do constituinte originário, elencadas no âmbito do Título II da Constituição Federal, que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, e também porque a Carta Magna está indubitavelmente num patamar hierárquico superior aos referidos tratados.


Desta feita, a interpretação lógica, sistemática e teleológica dos dispositivos analisados nos permite concluir que as funções exercidas pelo delegado de polícia encontram não só amparo, mas verdadeira previsão legal no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos, estando inserido no conceito amplo de autoridade previsto nesses tratados, demonstrado que o sistema processual penal brasileiro, nesse aspecto, não está a dever em nada, visto que é ainda mais rigoroso ao estabelecer um duplo controle de legalidade da prisão em flagrante, realizado tanto pelo delegado de polícia como pelo juiz de direito, sob o controle externo do Ministério Público e da própria defesa.


Desconstruído o mito, reportamo-nos à análise da conveniência de se instituir a audiência de custódia nos moldes como proposto pelo PLS nº 554, de 2011, principalmente em razão dos riscos ao sistema acusatório.


Em função do princípio acusatório, é necessário um distanciamento entre o julgador e os fatos sob investigação, pois meras conjecturas iniciais não contrastadas com outros elementos oriundos da investigação de seguimento não raramente conduzem até o investigador mais cauteloso a equívocos.


Adotando-se um modelo de audiência de custódia, é inevitável que o julgador cristalize um juízo acerca da conduta do preso com base exclusivamente naqueles elementos colhidos precariamente, sem contraponto ou cotejo com outros que confirmem ou não as conjecturas iniciais da prisão, gerando um convencimento embasado em indícios de autoria e materialidade muitas vezes frágeis, que inevitavelmente acompanharão o magistrado até a sentença.


Esse juízo de valor sobre os fatos brutos por parte do juiz representa um retrocesso grave em termos de garantias individuais e mácula sobre os pressupostos de isenção e imparcialidade do julgador, valores inexoráveis do sistema acusatório, ao lado da separação das funções de investigar, acusar e julgar.


Quem conhece a sistemática procedimental da prisão em flagrante, sabe que o delegado de polícia não é mero homologador de prisões, porquanto faz a análise da situação sob os aspectos fáticos e jurídicos, não estando obrigado a homologar prisões ilegais ou que não estejam em situação flagrancial.


Vale ressaltar que uma lei obrigando a apresentação de todos os presos perante o Poder Judiciário exigiria a organização de volumosas pautas de audiência com juiz, Ministério Público e Defensoria Pública diariamente para apreciar todas as prisões em flagrante.


Essa proposta se mostra totalmente impraticável se pensarmos nos milhares de municípios pelo interior do Brasil, que, quando muito, contam apenas com um delegado de polícia, sendo esta muitas vezes a única autoridade a menos de 200 km de distância que, por dever de ofício, vai até onde se encontra o cidadão detido para analisar a legalidade de sua prisão, postura que dificilmente se verá por parte de uma comissão de audiência de custódia.


Logo, não é preciso grande esforço para perceber que uma lei com tais imposições não seria observada, criando mais uma causa de nulidade processual da prisão, que resultaria inevitavelmente no relaxamento de prisões em massa, trazendo intranquilidade social e depreciação à imagem do Poder Judiciário.


Não se olvida, ainda, que a audiência de custódia aumentaria os gastos públicos na área de segurança pública, onde os recursos são notoriamente escassos, exigindo a contratação de grandes efetivos policiais ou, o que é mais provável, o desvio dos poucos policiais para atividades alheias às suas funções, como o transporte e a custódia de presos.


Para os magistrados e auxiliares da Justiça não seriam insignificantes os riscos pessoais, porquanto se veriam em meio a inúmeros presos, fazendo de Fóruns verdadeiras cadeias transitórias, diante do tráfego de presos para realização de audiências de custódia, podendo ensejar tentativas de resgates violentos, notadamente em casos de integrantes de organizações criminosas, o que, por consequência, exigiria mais seguranças, mais recursos e contratações, onerando ainda mais os contribuintes.


Portanto, reitera-se, mostra-se mais razoável e factível modificações legislativas pontuais para extirpar qualquer possibilidade de violações à incolumidade do preso ficarem impunes, garantindo ainda um rápido contato dele com o juiz nos casos em que permanecer preso após a lavratura do auto de prisão em flagrante, as quais arrolamos abaixo:


A participação da defesa técnica no interrogatório policial e a obrigatoriedade de realização de exame de corpo de delito em toda pessoa presa, medidas importantes não previstas no PLS nº 554/2011;

    Fim da obrigatoriedade de manutenção da prisão em flagrante de pessoa que tenha praticado fato típico sob manto de evidente causa excludente de ilicitude;

    A vedação à custódia de presos em delegacias por prazo superior a 24 horas, medida não prevista no PLS nº 554, de 2011, e que representa uma situação degradante violadora dos direitos humanos previstos em tratados internacionais, pois o preso não exerce direitos básicos previstos na Lei de Execução Penal;

    Possibilidade de o delegado de polícia aplicar algumas medidas cautelares não sujeitas à reserva de jurisdição, tão somente nos casos em que for cabível fiança, servindo como alternativa à manutenção de prisões desnecessárias por crimes leves;

    A possibilidade de, a critério do juiz, o preso ser pessoalmente apresentado, após o recebimento do auto de prisão em flagrante, caso ele não tenha sido colocado em liberdade previamente pelo delegado de polícia, com fiança ou outra medida cautelar diversa da prisão.


Com isso, esperamos ter conseguido expor as razões pelas quais a audiência de custódia não é a panacéia incansavelmente divulgada, devendo, por outro lado, ser ponderada se representa vantagens reais sem riscos indesejáveis ao sistema acusatório, não obstante devamos reconhecer que é preciso avançar na temática dos direitos humanos, se possível adotando as medidas sugeridas acima.

 


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