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31/12/2012 - 15:26:09

OPINIÃO

Algumas verdades sobre o Inquérito Policial

Neste artigo, o Delegado Federal Edson Garutti, demonstra que a boa condução do inquérito policial é uma medida de garantia do cidadão

  • Revista Prisma
  • Edson Fábio Garutti Moreira

   

É comum ouvir por aí que o inquérito policial (IPL) é peça meramente informativa que se destina a buscar prova da materialidade e indícios de autoria, tendo como destinatário o Ministério Público (MP), que formará sua opinião sobre a ocorrência ou não de crime. Geralmente, seguem-se a esta afirmação as explicações de que o inquérito policial é dispensável, que tudo o que se produz ali deve ser reproduzido em juízo e que tal instrumento não pode ser utilizado como único fundamento na decisão judicial.


Tais afirmações merecem boa dose de ponderação, pois a simples aceitação superficial delas leva a erros fundamentais que, no limite, diminuem as garantias do cidadão.


De fato, a existência de IPL não é requisito necessário para a existência de ação penal. Via de regra, a ação penal tem início com o recebimento de uma denúncia do Ministério Publico na qual são demonstrados os fatos que caracterizam um ou mais crimes. É a chamada “fase processual” da persecução penal, que normalmente ocorre após uma apuração dos fatos. Além do inquérito, existem outras formas pelas quais o titular da ação penal (o MP) chega a ter conhecimento dos fatos. É o caso, por exemplo, do recebimento pelo MP dos resultados de apurações administrativas (da Receita Federal, do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários etc). Em qualquer caso, o Ministério Público poderá considerar que os fatos e seus responsáveis (autores do crime) já estão suficientemente esclarecidos, aptos a ensejar a propositura da denúncia.


É preciso ponderar, porém, que quando um IPL tem a chance de ser bem conduzido (deixo ao leitor a tarefa de imaginar todos os óbices jurídicos, práticos e políticos envolvidos), os elementos informativos nele colhidos passam a ser, em sua essência, fundamentais para a fase processual da persecução penal. Além disso, existindo o IPL, ele não poderá simplesmente ser dispensado, mas acompanhará a ação penal até o final, como apenso nos autos. Ademais, como dispensar um inquérito que esclareça efetivamente os fatos?


É bem verdade que o IPL não pode ser o único fundamento numa decisão judicial, pelo menos não na decisão condenatória. Isto me parece salutar, haja vista que no modelo brasileiro para a chamada “fase investigativa” da persecução penal, não há contraditório – embate entre acusação e defesa – de modo que o IPL produz “elementos informativos” (na dicção da lei) e não “provas” (na acepção técnica do termo prova é o resultado do crivo do contraditório sobre os elementos informativos, colhidos ou não no IPL). No inquérito não há acusação nem defesa, mas a busca pela verdade dos fatos.


Neste ponto, dizem por aí que “tudo o que foi feito no IPL tem que ser refeito em juízo”. Na realidade, não é disso que se trata, mas sim que em juízo deverá ser aplicado o contraditório aos elementos produzidos no IPL (oportunidade de ampla defesa na fase processual). Em razão desta dinâmica, havendo oportunidade de manifestação da defesa sobre os elementos produzidos no IPL, a decisão judicial já não será exclusivamente tomada com base no IPL, mas com base no contraditório realizado sobre o IPL. Não há repetição dos elementos informativos, mas aplicação do contraditório sobre eles.


Além disso, o inquérito também é importante para a depuração do contexto fático. Em juízo não será necessário produzir aquelas diligências que, no IPL, já se mostraram meras tentativas sem êxito ou então apenas um meio para se chegar às diligências que efetivamente informam a verdade. Vai-se direto ao ponto que interessa, para o fato e suas circunstancias, e se aplica o contraditório sobre o elemento informativo efetivamente produzido. Assim, por exemplo, das dezenas de pessoas ouvidas em um inquérito, poderão ser escolhidas para testemunhar em juízo apenas algumas poucas cuja qualidade do testemunho seja relevante e mais rica em detalhes.


Também é preciso melhor reflexão quando se diz que o IPL “busca a prova da materialidade delitiva”. Ora, como visto, o que se busca é a verdade dos fatos, sejam eles caracterizadores de crime ou não. Se as investigações podem concluir até mesmo pela inexistência de crime, como dizer que a finalidade do IPL seria provar a materialidade delitiva? Ele servirá para esclarecer a materialidade quando houver materialidade; quando não houver, servirá para esclarecer que não há. Não pode ser diferente disso, pois o inquérito busca a verdade real sobre os fatos.


Disso decorre uma característica fundamental do trabalho de Polícia Judiciária, notadamente no que toca à autoridade policial – o delegado de polícia – já que a nota maior de toda a sua atividade fim é a imparcialidade. Não sendo parte (nem acusação, nem defesa) ele deve buscar a verdade dos fatos de forma isenta.


Dizem por aí que ao delegado de polícia não caberia emitir opinião sobre os fatos, mas isto não é verdade. Ao contrário, há momentos em que deve emitir opinião sobre os fatos, sob pena de alegação de nulidade dos atos administrativos decisórios que pratica. Por exemplo, ao apor a tipificação penal provisória na portaria de instauração de IPL; ao realizar a tipificação penal e expor seu convencimento pessoal, cumprindo a exigência de motivação, no ato de indiciamento (ato privativo, pelo qual a autoridade policial enuncia sua íntima convicção de que uma determinada pessoa é responsável pelos fatos criminosos apurados); ao realizar tipificação e expor motivação também para a prisão em flagrante e em outros inúmeros casos.


No relatório final do IPL, por não se tratar de ato decisório, não há obrigação de manifestar qualquer opinião, mas daí não se pode concluir, como querem alguns, que o delegado de polícia esteja proibido de emitir seu juízo a respeito dos fatos. Proibido não está, por ausência de lei neste sentido, de modo que pode emitir opinião sobre os fatos que apurou, embora isto não vincule em nada o promotor, o juiz ou até mesmo outra autoridade policial que venha dar seguimento no feito.


Sobre o destinatário do IPL também devemos um minuto de atenção. O Ministério Público é inequivocamente o principal destinatário dos elementos informativos colhidos no IPL, mas não é o único. Na qualidade de titular da ação penal, é ao MP que são encaminhados os elementos informativos colhidos para que verifique, na sua íntima convicção, se seria o caso de oferecimento da denúncia (início da ação penal). Todavia, recebida a denúncia pelo Juiz, os autos do IPL passam a ser anexos da ação penal e, assim, passam a ter como destinatário direto o juízo, que, de resto, é o destinatário de todos os elementos informativos, pois é quem, ao final, vai valorar todas as provas e decidir, dizendo o direito sobre aqueles fatos concretos.


Noutros pontos, o IPL ainda tem como destinatário outros segmentos do Poder Público: por exemplo, os dados colhidos nos IPLs são rotineiramente utilizados pelas autoridades de Segurança Pública estaduais e nacional para servirem de indicadores criminais aptos a motivar ou justificar Políticas Públicas neste segmento; também a própria Polícia pode ser destinatária do inquérito policial em certos momentos, bastando observar que é por meio das investigações policiais que se acaba conhecendo os modos e metodologias de organizações criminosas – este conhecimento será transposto como inteligência policial para desvendar outros crimes. Também a vítima pode ser tida em certos casos como destinatária do IPL, ainda que indiretamente, tanto que possui interesse jurídico na sua instauração (tem direito a recurso ao chefe de polícia caso não seja o instaurado IPL para os fatos qu comunicou) e na sua boa condução, mesmo que visando eventual futura recomposição civil dos danos causados pelo crime.


Todas as ponderações acima me levam a concluir que a boa condução do inquérito policial é uma medida de garantia do cidadão, não só pelo direito de ser investigado por alguém isento e imparcial, mas também pela tripla garantia de ver três setores distintos do Estado se compondo num sistema de freios e contrapesos - no Brasil, embora a sistemática de Polícia Judiciária seja criticada por alguns setores, como se denota pelas características fundamentais do inquérito policial este é um procedimento que fornece uma tripla garantia, já que os entes envolvidos (Polícia, Ministério Público e Magistratura) não possuem relação de subordinação hierárquica entre si, cada qual devendo motivar seus atos decisórios de forma independente e não vinculada.
Diante disso tudo, cumpre refletir sobre a figura do delegado de polícia, cidadão nomeado pelo Estado para a presidência do inquérito policial, após aprovação em rigoroso concurso público específico. Quando atua na atividade fim de Polícia Judiciária, este servidor público nada mais faz que decidir, a todo instante, sobre os rumos do procedimento. A maior parte destas decisões se funda em poder discricionário (não arbitrário), cabendo à autoridade policial uma margem de escolha relativamente ampla. Por exemplo: quem será intimado, em que ordem, o que será perguntado, que tipo de diligências realizar etc. Certas decisões, porém, repercutem diretamente nas esferas individuais das pessoas e carecem de motivação pormenorizada – é o caso, por exemplo, do indiciamento, da prisão em flagrante e da instauração de inquérito policial, da representação pela quebra de sigilos dentre outras várias.


Para desempenhar suas atribuições a contento, este servidor público precisa de garantias para que possa ser imparcial. Por mais que haja níveis de ingerência política (por exemplo, qual setor da segurança pública será priorizado ou qual caso criminal será escolhido para ter direcionados recursos humanos e materiais suplementares), acredito muito que no âmbito de suas decisões nos atos de Polícia Judiciária, o delegado de polícia possui independência, não podendo ser forçado a decidir num rumo ou noutro por quem quer que seja. É preciso dizer que a salutar hierarquia e disciplina que integra os órgãos policiais não se aplica no âmbito das decisões de conteúdo reservado à íntima convicção da autoridade policial, notadamente àquelas vinculadas à valoração jurídica dos fatos.


Com estas breves linhas não pretendi esgotar o assunto, mas trazer reflexões práticas importantes, que afetam diariamente o trabalho de milhares de delegados de polícia pelo Brasil. Embora me pareçam tão óbvias, as ponderações trazidas são criticadas por diversos setores, muitos deles com interesses outros, que não a boa condução de uma investigação penal eficiente.


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