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31/12/2012 - 15:50:47

PRESÍDIOS

"Eu preferia morrer"

Declaração do ministro da Justiça revela que estar preso no Brasil significa cumprir não apenas uma medida restritiva de liberdade, mas viver um suplício comparado a penas aplicadas em séculos passados

  • Revista Prisma
  • Vanessa Negrini

   

Michel Foucault inicia sua obra clássica sobre a história da violência nas prisões descrevendo detalhadamente a execução de um condenado em 1757, em Paris. O esquartejamento foi precedido por um longo ritual de suplício, próprio da época. Com o passar do tempo, relata o autor de ‘Vigiar e Punir’, pouco a pouco, o corpo deixou de ser o alvo principal da repressão penal. Entretanto, reconhece logo à frente, nos modernos mecanismos da justiça criminal permanece um fundo supliciante. Para Foucault, a prisão, nos seus dispositivos mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. Mesmo a privação pura e simples da liberdade nunca funcionou sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física.
As ideias do pensador francês se aplicam fielmente à realidade brasileira, em que as prisões – superlotadas e insalubres – se tornaram verdadeiros instrumentos de suplício, conforme atesta o próprio ministro da Justiça. Durante encontro com empresários em São Paulo, José Eduardo Cardozo disse que “preferia morrer” a ficar no sistema penitenciário brasileiro. “Do fundo do meu coração, se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, eu preferia morrer”, afirmou.
O Brasil tem uma população carcerária de 514 mil presos, mas a capacidade é para 306 mil detentos. Isso significa um déficit de 208 mil vagas, segundo dados de dezembro de 2011 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça. A superlotação vem acompanhada de maus-tratos e violência entre presos, em alguns casos com total perda de controle por parte do Estado.
O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário, de 2008, descreve “celas superlotadas, ocasionando insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana”. Em suas inspeções, a CPI “encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário. Em outros estabelecimentos, homens seminus gemendo diante da cela entupida com temperaturas de até 50 graus”. A situação é a mesma em presídios femininos, com o agravante da presença de crianças “recém-nascidas espremidas em celas sujas”.
Quatro anos após o trabalho realizado pela CPI, a situação dos presídios brasileiros parece não ter se alterado. O tema desperta pouca atenção do poder público, mídia e sociedade, salvo em situações de rebelião ou fuga. Essa indiferença talvez ocorra porque, no fundo, permanece no inconsciente coletivo que qualquer pena um pouco séria deve conter alguma coisa do suplício, conforme diria Foucault. E as prisões nacionais cumprem bem esse papel.

|PROVISÓRIO BANALIZADO. De acordo com Foucault, conhecem-se todos os inconvenientes da prisão e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. Entretanto, a sociedade não enxerga o que pôr em seu lugar. Seria a prisão a detestável solução de que não se pode abrir mão?
No Brasil, quase 40% dos presos deveriam estar fora das celas aguardando julgamento em liberdade. São os chamados presos provisórios, que somam 196 mil encarcerados, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça.
De acordo com especialistas, a prisão provisória é utilizada em excesso no Brasil. Nas leis penais, a prisão provisória é excepcional. Ou seja, se não estiverem configurados os quesitos da prisão provisória, o indivíduo deve ser posto em liberdade.
O excesso de presos provisórios foi alvo da nova lei de fiança (Lei 12.403), a qual criou medidas cautelares com o objetivo de combater a banalização desse tipo de prisão no país. No entanto, a legislação, em vigor desde agosto de 2011, não resultou em uma diminuição na população carcerária brasileira, como previsto.
A intenção da lei era evitar a prisão de alguém que, mesmo condenado, não seria preso. É o caso de um crime com pena de até dois anos, por exemplo. A medida restritiva de liberdade poderia ser substituída por prestação de serviço à comunidade. Mas, no Brasil, em muitos casos, o réu acaba ficando preso provisoriamente por mais tempo do que isso antes de ser julgado.
Além de abusiva, a detenção provisória se tornou onerosa. A custódia geral dos presos representou um gasto de R$ 5 bilhões no ano de 2011. Esse número seria reduzido com uma varredura no sistema prisional brasileiro, a fim de identificar os casos em que o indivíduo pode responder em liberdade.

|MUTIRÕES. De 2008 a 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou mutirões carcerários para avaliar a situação dos processos de presos provisórios e condenados. Foram analisados 415 mil processos. O resultado revelou que 36 mil pessoas já deveriam estar soltas e outras 76 mil estavam em condições de receber progressão de pena.
O relatório do CNJ apontou problemas como o inexpressivo número de análise dos benefícios de comutação e indulto; duplicidade de condenações e de execuções derivadas de um mesmo crime; inexistência de atendimento jurídico ao preso; e morosidade no julgamento dos recursos.
O desrespeito às regras do regime de cumprimento da pena também é recorrente. São raros os estabelecimentos adequados para o cumprimento das penas em regime semiaberto e quase inexistentes aqueles destinados ao regime aberto. Dessa forma, na prática, a maioria dos apenados em regime semiaberto se submete às regras do regime fechado.

|sem preparo. A simples  adoção de penas alternativas, o uso de tornozeleiras e investimentos nos regimes aberto e semiaberto, não resolve a caótica situação do sistema prisional brasileiro.
O Estado brasileiro ainda não se mostrou capaz de fiscalizar adequadamente a aplicação dessas alternativas. Falta  integração entre os órgãos públicos envolvidos. Não há uma base de informações compartilhada cujos dados sejam confiáveis.
Como consequência, presos fora do regime fechado têm descumprido as condições de execução penal por absoluta incapacidade do Estado em realizar o monitoramento. No Brasil, 16% dos presos deixam a prisão durante o dia e voltam para a cadeia para dormir. Mas, muitos desses detentos  continuam a cometer crimes.
É o exemplo de Alex Alcântara de Arruda. Condenado em março de 2011 a um ano e nove meses, em regime semiaberto, por uma tentativa de roubo. No dia 10 de novembro matou a secretária Daniela Nogueira Oliveira, 25 anos, grávida de nove meses.

|PERFIL DOS PRESOS. Em 2008, a Câmara Federal instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os problemas do sistema carcerário no país e apontar soluções. Após oito meses de trabalho e diligências em 102 presídios de 18 estados, o grupo constatou uma série de problemas.
Na opinião do então relator da CPI, deputado Domingos Dutra (PT-MA), o descaso do poder público com o sistema prisional tem um motivo: “Não encontrei nenhum ‘colarinho branco’ preso em nenhum estabelecimento penal. Não encontrei nenhum ‘grã-fino’’. Só gente pobre, lascada, que viveu a vida inteira na periferia”.
A constatação do parlamentar vai ao encontro do que identificou Foucault em seus estudos. Segundo ele, ao fazer da detenção a pena por excelência, são introduzidos processos de dominação característicos de um tipo particular de poder.
De fato, o perfil do encarcerado brasileiro corresponde ao dos indivíduos excluídos na sociedade brasileira. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2012) revela que 60,3 dos presos no Sistema Penitenciário são negros ou pardos. E pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (2007) mostra que 70% não completaram o ensino fundamental e 10,5% são analfabetos. Só 18% desenvolvem alguma atividade educativa e 72% vive em total ociosidade.
O relatório da CPI chama ainda a atenção das autoridades para a acomodação indiscriminada dos presos. “É uma salada de presos, uma mistura de presos provisórios com sentenciados, jovens com idosos, dos que cometeram pequenos delitos com os de alta periculosidade, de detentos doentes com saudáveis”, afirmou Dutra, lembrando que o Código Penal estabelece uma separação por idade, sexo e tipo de pena.
Foram apresentados 12 projetos de lei, que estão hoje em tramitação na Câmara. Dois deles já foram aprovados e viraram leis: o primeiro estabelece que, a cada três dias trabalhados pelo detendo, a pena é reduzida em um dia. O segundo aplica o mesmo princípio ao estudo.
“A maior contribuição da CPI foi com relação à mudança de mentalidade do poder público e da sociedade. Antes dela, só se falava do sistema carcerário quando havia rebelião. Hoje, o Estado já se deu conta que deve fazer uma política séria para o sistema prisional ou a segurança pública não terá solução”, concluiu o deputado.

|PALIATIVO. Em vez de discutir a eficácia do sistema penitenciário como um todo, o governo federal se limita a tentar acabar com o déficit de vagas. Em 2011, lançou um plano que prevê R$ 1,1 bilhão para a criação de vagas em penitenciárias até 2014. O dinheiro servirá para financiar a construção de 62 mil vagas. Além do número de vagas não ser suficiente, sendo três vezes menor do que a demanda atual, um ano após o anúncio do plano, nenhum presídio teve a construção iniciada.
Em Vigiar e Punir, Foucault conclui que o suplício, mesmo se tem como função “purgar” o crime, não reconcilia; traça sobre o corpo do condenado sinais que não se apagam. O autor lembra que juristas do século XVIII pregavam serem necessárias penas severas para que o exemplo ficasse profundamente inscrito no coração dos homens. No entanto, o suplício das prisões brasileiras não restabelece a Justiça e sequer está inserido numa dinâmica do exemplo.
Para Foucault, é preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar. “No pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua humanidade”, afirma. O pensador conclui que “a delinquência é a vingança da prisão contra a justiça”. O Brasil, com suas prisões abarrotadas, alta reincidência e a manutenção de elevados índices de violência e criminalidade, mostra que ele está certo.
Com informações da EBC e G1

DIFERENÇA DO SISTEMA FEDERAL

Enquanto o sistema penitenciário dos Estados sofre com todo tipo de problema estruturante, o federal colhe os frutos do planejamento e da rigidez. Nas penitenciárias federais estão alguns dos criminosos mais perigosos do Brasil. Nesses presídios não há registro de maus-tratos, de doenças contagiosas ou de superlotação, mas ainda assim são considerados o “pesadelo” dos criminosos. Isso porque nos presídios federais não há regalias e as chances de fugas ou rebeliões são praticamente nulas. Horários controlados, contatos externos restritos, impossibilidade de acesso a drogas ou aparelhos eletrônicos, como celulares. Os presídios federais brasileiros mostram que o sistema prisional fechado pode representar o cumprimento de uma pena restritiva de liberdade, proporcional à gravidade dos crimes cometidos, sem, no entanto, ferir a dignidade da pessoa humana. O perigo é acabar contaminando este sistema, que funciona, com os problemas dos Estados. Recentemente, por exemplo, São Paulo e Santa Catarina se valeram dos presídios federais para tentar conter crises em suas respectivas instituições estaduais.

 


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