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30/06/2012 - 11:41:13

CONCURSO DE ARTIGO

Discricionariedade e Aplicação Seletiva da Lei

Conheça o texto vencedor do primeiro concurso de artigos científicos promovido pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal

  • Revista Prisma
  • ORLANDO MOREIRA NUNES

   

Uma das mais importantes e negligenciadas questões para um adequado entendimento do problema da Polícia no Estado Democrático de Direito é a questão da discricionariedade da decisão policial e do seu aspecto mais contundente, a possibilidade de aplicação seletiva da Lei. Para a abordagem desta questão tomaremos como referência as análises de Muniz (2008), e o seu diálogo com as considerações elaboradas por Klockars (1985), onde a discricionariedade emerge como um aspecto essencial do trabalho policial.

 

Numa tradução livre da definição proposta por Kenneth (1969), pode-se dizer que a discricionariedade se verifica sempre que os limites efetivos ao seu poder permitem ao policial ou à própria polícia fazer escolhas entre possíveis rotas de ação ou inação. Não só os policiais nas ruas, mas as próprias agências tomam decisões discricionárias quando decidem aonde alocar os seus limitados recursos materiais e humanos; o que deve ser ensinado nas academias; qual a prioridade no atendimento, etc. A gestão dos recursos policiais, a alocação e prioridade pela escolha do que a polícia deve e não deve fazer, é a realidade mais tangível pela qual se impede que a polícia se emancipe do governo. (PROENÇA JR, 2009)

 

Uma decisão policial é caracterizada como discricionária quando pode ser executada como uma espécie de “última decisão”, que se sustenta e se afirma mesmo diante de oposições. Na maioria das vezes, o que a polícia faz ou deixa de fazer se aproxima de uma sucessão de fatos consumados, que só admitem a sua absorção, comemoração ou pesar.

 

O último elemento aborda duas possibilidades, o “agir” ou “não agir”. O reconhecimento da inação como uma alternativa decisória possível e válida da polícia, permite melhor circunscrever a realidade do “decisionismo policial”. A maioria das decisões policiais tem como encaminhamento “não agir”, e possuem baixa visibilidade. É o caso, por exemplo, da decisão policial de não deter uma pessoa, uma espécie de “não-evento”, de “não-fato”, já que dele não resulta nenhum desdobramento burocrático, onde a oportunidade de revisão e reversão a posteriori é remota ou quase inexistente.

 

A discricionariedade policial seria, assim, inerente a um meio de força, cuja razão de ser é a tempestividade. A solução policial só tem como emergir como um dispositivo “ad hoc”, contingente, de própria lavra do policial, que se apresente como satisfatório para uma solução imediata. É precisamente por isso, que ela não tem como tolerar emenda, retardo, ou recurso no ato de sua execução, no “agora” da exigência (PROENÇA JR, 2009).

 

A imagem de que a Polícia aplica a legislação de forma integral compromete o entendimento da natureza da ação policial nas sociedades democráticas, fomenta a ilusão de que uma polícia cidadã poderia agir em situações de emergência, em contextos que trazem elementos de incerteza, risco e perigo, sem poder dispor de algum espaço de autonomia e liberdade para decidir, alimentando a fantasia de que uma polícia democrática poderia exercer o seu mandato subtraída da capacidade de escolher o curso de ação mais adequado. A facticidade das práxis policial nos demonstra que, diante da impossibilidade real de poder se antecipar a qualquer elemento de singularidade, contingência, acaso ou surpresa, intrínsecos às demandas dos cidadãos, a oportunidade da intervenção policial se dá exatamente pela tomada de decisões discricionárias.

 

Ao se recusar a reconhecer estes limites, continuando a agir como se a norma ou a supervisão fossem mais capazes do que de fato são, o risco é a ilusão de que se controla tudo, quando na verdade, controla-se muito pouco ou nada, assegurando, e mesmo alimentando, a autonomia policial, o que condena o apetite formalista ao fracasso.

 

O recurso à discricionariedade e o seu emprego ordinário não são expedientes exclusivos das polícias, se fazem presentes em outras atividades profissionais. (professores, advogados, engenheiros, cientistas, magistrados, bombeiros, etc.). Contudo, no caso destes atores, observa-se uma maior aceitação pública quanto ao uso da discricionariedade.

 

|APLICAÇÃO SELETIVA DA LEI PELA POLÍCIA. A possibilidade de aplicação seletiva da lei tem se apresentado sempre envolta em questionamentos que estimulam o não reconhecimento de sua propriedade e pertinência na atividade policial. O mais comum deles é a proposição de “Estatutos de Plena Aplicação da Lei”. Por mais que seja óbvio que este tipo de normatividade não se mostra factível na vida real, ela impõe formalmente uma obrigação ou um dever à polícia de aplicar integralmente todas as leis, o que converte a aplicação seletiva da lei em um ato extralegal ou mais propriamente ilegal (KLOCKARS,1985), condenada à clandestinidade. Isto ocorre, sobretudo, no Brasil, onde o ato policial discricionário tende a ser interpretado juridicamente como “prevaricação”, situação que tem motivado ora a paralisia decisória policial, ora a um acordo tácito na polícia de sustentação dos necessários procedimentos policiais de aplicação seletiva da lei numa ordem de total informalidade e baixa institucionalização.

 

Outro argumento recorrente é que seria uma violação da separação dos poderes, uma usurpação da competência do poder legislativo, uma perversão a ser combatida sob pena de atuações arbitrárias e discriminatórias. Tem-se a fantasia jurídica de que o texto legal é literal, auto evidente, exato e suficientemente pleno a ponto de prever a complexidade do real. Isto conduz à ocultação das necessárias interpretações que tornam este mesmo texto legal possível, útil e capaz de ser empreendido.

 

Por fim, a aplicação seletiva da lei corresponderia, no estado democrático de direito, à indesejada prevalência das vontades particulares dos indivíduos sobre o interesse público expresso, por exemplo, nos princípios da imparcialidade, equidade e universalidade.
Por mais que estejam impregnadas em nossas convicções dogmáticas, estas objeções convergem para uma meta impossível, a supressão da discricionariedade da decisão policial. Resta-nos admitir que os esforços de democratização das práticas policiais e, por sua vez, as iniciativas de controle dos abusos de poder, devem reconhecer e considerar a discricionariedade e a aplicação seletiva da Lei como um atributo da profissão policial.

 

Não é demais lembrar que as oportunidades de abusos de poder ou de práticas policiais arbitrárias, embora repugnantes sob o ponto de vista democrático, não resultam da existência do recurso discricionário, nem da aplicação seletiva da lei, ainda que deles possam se beneficiar. Tais violações podem ocorrer em qualquer contexto de decisões policiais, sejam aquelas mais imediatamente percebidas como discricionárias ou não, basta que as escolhas efetuadas pelos policiais representem visões preconceituosas, segregadoras, excludentes ou motivadas por interesses escusos de indivíduos ou grupos de policiais.

 

Assumindo que a aplicação seletiva da lei é parte indissociável do trabalho policial, torna-se possível enfrentar o problema do controle da ação policial de forma um pouco mais realista. Klockars (1985) identifica três modelos para a tarefa.

 

O modelo identificado com a reafirmação de uma fachada de plena aplicação da lei, até admite que o trabalho da polícia seja altamente discricionário, mas, mesmo assim, opta por “nada fazer”, não enfrentar a questão e continuar reforçando a aparência de plena aplicação da Lei a fim de ocultar esta característica aos olhos dos cidadãos. Para os seus defensores, a revelação pública seria perigosa, motivando desconfianças e ressentimentos entre os cidadãos e tornando a Polícia alvo fácil para grupos de interesse, pressões políticas e de apropriações privadas. Não consideram, entretanto, que ambas as situações perversas já se verificam em intensidade muito além do aceitável em nossa realidade.

 

A segunda proposta seria a construção de regras públicas para a aplicação seletiva da lei exercida pela polícia. Este modelo reconhece que as práticas policiais de aplicação seletiva da lei estruturam a rotina policial, a despeito de serem ou não reconhecidas. Com base nesta constatação, propõe que as políticas policiais de aplicação seletiva da Lei (selective enforcement), devam se tornar públicas, abertas, submetidas às críticas e recomendações dos cidadãos, políticos, setores organizados da sociedade civil, etc.

 

O modelo verdadeiramente profissional (true professional model) permite uma conciliação crítica das duas propostas anteriores, afirmando que algumas, mas não todas, as decisões de aplicação seletiva da lei, devem ser ocultadas do público. Estas decisões seriam aquelas que se configuram como reservas ou segredos profissionais, imperativo observado em outras atividades de regulação, como é o caso do fisco, que divulga uma política de plena aplicação, embora suas práticas de fiscalização estejam orientadas por critérios profissionais de aplicação seletiva não divulgados, exigências observadas em outras práticas profissionais como a pesquisa científica e a medicina, onde parte dos procedimentos e dos critérios de escolha não estão abertos ao monitoramento da sociedade, posto que sua submissão à validação pública compromete a própria construção de resultados de interesse social.

 

Tais decisões responderiam a uma necessidade técnica e prática do trabalho policial, como forma de evitar estímulos a infrações, de desacreditar a função reguladora da Polícia ou mesmo ser interpretado como um endosso policial a certas práticas ilegais. O modelo reconhece que muito do conteúdo das políticas de imposição seletiva da lei ultrapassa o escopo de intervenção e do saber acessível aos cidadãos e pode aproveitar os avanços obtidos pelo conhecimento produzido pelas polícias e pela ciência, a fim de se consolidarem critérios e parâmetros objetivos, quantificáveis, verificáveis, controláveis (accountability) de aplicação seletiva da Lei pela Polícia.

 

Conclusão. Podemos afirmar que é reconhecendo o papel simbólico da Instituição Policial como depositária da soberania do Estado (situação que coloca aquela bem no centro da tensão entre legalidade e legitimidade) que o senso comum do povo a reconhece como materialização e imagem do governo a que estão submetidos, muito mais que outras instituições típicas do Estado, como as vinculadas aos poderes legislativo e Judiciário, ou à saúde, educação, assistência, infra-estrutura, etc. Este aspecto também explica porque os assuntos relacionados à Polícia e a diversos aspectos de sua atividade, embora freqüentemente nos remetam a situações desagradáveis, despertam imediatamente imensa parcela da atenção das pessoas, e, ainda, por que a Polícia é constantemente levada, a desempenhar atribuições que originalmente não deveriam ser suas, mas que acaba tendo que as assumir.

 

Percebe-se que, não obstante toda a construção doutrinária em contrário que se esforça para convencer que a atividade policial está sob rigoroso controle estatal, a discricionariedade e a efetividade (facticidade) da decisão do policial, embora tenha como referência a Lei, não está adstrita ou limitada pela deliberação legislativa. Embora se vincule à decisão política do executivo, não se configura ou se amolda perfeitamente a ela e, por fim, na maioria das vezes, não está sujeita, na prática, a revisão judicial. Esta afirmação não significa que a decisão policial não é influenciada por outros poderes ou forças exteriores, apenas chama atenção para a facticidade de que, dentro dos limites políticos, normativos e técnicos estabelecidos, os quais ainda conferem considerável margem de manobra legítima ao policial, este ainda detém o poder de executar a sua própria decisão, que, na prática, na maioria das vezes, apenas pode ser revista em tempo real por ele mesmo ou pelos colegas policiais.

 

Assim, para se falar em avanços rumo a uma Polícia Democrática impõe-se o reconhecimento do policial como uma atividade peculiar que deve desfrutar de um acervo especializado de conhecimentos, técnicas e práticas próprios, sistematizados a partir da reflexão científica, consolidando-se uma Ciência Policial para assumir esta demanda.

 

Entre outras faces de uma Ciência Policial que esteja à altura de ocupar esta lacuna, destaco a importância de uma vertente sociológica, alinhada com as recentes conquistas teóricas da Criminologia contemporânea, da Sociologia Criminal e Jurídico-penal, que possa revelar sua utilidade não apenas em evidenciar os cordões que movem os indivíduos que ela observa, mas que, sem jamais se esquecer que lida com homens, mesmo quando estes, como marionetes, jogam um jogo cujas regras ignoram, possa encontrar a sua utilidade na tarefa de restituir a esses homens o sentido de suas ações (BOURDIEU, 2006), evitando, assim, o formalismo (que afirma a autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo social) e o instrumentalismo (que concebe o direito como um reflexo ou utensílio a serviço dos dominantes).

 

Devemos nos render definitivamente ao reconhecimento de que o exercício da discricionariedade é elemento inerente às atividades policiais, condição para o exercício do mandato policial, e que qualquer aspiração que ambicione uma polícia democrática não pode se esquivar de enfrentar adequadamente a questão de reconhecer, admitir e aprimorar os processos policiais discricionários, o exercício discricionário do poder coercitivo, que nos possibilitaria alcançar o imperativo categórico de fazer convergir as exigências do mundo da lei com as expectativas das leis do mundo, que materializa em ato o desafio interpretativo e executivo de encontrar uma solução pragmática capaz de trafegar pelas legalidades e legitimidades em conflito que caracterizam a sustentação democrática da ordem pública e que confrontam cada decisão policial.

 

Só assim podemos perceber o verdadeiro papel da decisão do agir (ou do não agir) e do como agir policial, em especial no que diz respeito à face mais representativa da discricionariedade policial, a aplicação seletiva da Lei, cujo caminho racional será o estabelecimento de critérios e parâmetros objetivos, cientificamente respaldados, para o seu exercício. Com efeito, reconhecer, sistematizar e controlar práticas estabelecidas de seletividade é o estado da arte em termos de polícia e democracia. (PROENÇA JR, 2009)

 

A sociedade brasileira, tendo em mente esta realidade inexorável, pode enfrentá-la tirando proveito de uma característica cultural que muitas vezes é referida apenas no seu aspecto negativo, pejorativo, qual seja a sua vocação para a flexibilidade, a improvisação, a adaptação, a informalidade, o “jeitinho brasileiro”. A reflexão sobre a complexidade da modernidade (ROULAND, 2003) nos demonstra a importância do “setor jurídico informal”, que costuma ser “neotradicional”, adaptando soluções antigas ao contexto novo e, freqüentemente, produz soluções inovadoras de surpreendente eficiência.

 

Um admirável exemplo disto é a experiência brasileira peculiar e absolutamente única dos Juizados Especiais Criminais, cuja ruptura, a partir da introdução do diálogo no processo penal, significa um divisor de águas. O Brasil, com esta inovação institucional, que não deixa de ser fruto do nosso caldeirão cultural, produz um modelo híbrido, reunindo elementos da tradição juspositivista latina típica da nossa tradição com elementos de direito consuetudinário próximos do common law anglo-saxão, o que confere ao caso brasileiro características singulares que devem ser observadas (VIANNA, 1999).

 

Nesta linha, a tendência ao desenvolvimento de modelos alternativos de justiça criminal pode proporcionar ao Brasil a oportunidade de oferecer modelos que indiquem um caminho a percorrer, como as experiências descritas por Achutti (2009), identificadas como Justiça Terapêutica, Justiça Instantânea e Justiça Restaurativa. Esta última, como nos descortina Rolim (2006), incorporando a tendência de retorno do conflito penal de menor complexidade e conseqüências para uma resolução no âmbito privado, sob a supervisão de mecanismos institucionais oficiais como a mediação e a conciliação, historicamente expurgados do processo penal pela nossa tradição jurídico-penal.

 

A realidade brasileira pode se favorecer não só da sua propensão cultural à flexibilidade, mas do seu arranjo institucional peculiar que permitiu, por exemplo, a criação dos Juizados Especiais, e da própria figura da Autoridade Policial, o Delegado de Polícia, colocando-o bem olho do furacão de todo este contexto de tensão, onde o poder de fato que a suas decisões cotidianas encerram, embora evidentes, não lhe são formalmente reconhecidos, e ele é levado a exercê-los informalmente, ressentindo-se de legitimação institucional, o que leva a sua atividade cotidiana a aproximar-se perigosamente da clandestinidade, quando exerce na prática, funções que não lhe são atribuídas pelo direito vigente, mas pela constante tensão a que está submetido, entre as quais a de servir de mediador ou conciliador em meio aos conflitos penais cotidianos de menor potencial ofensivo.

 

A consideração da oportunidade de uma apropriação racional, institucional, sistemática, cientificamente fundamentada, estabelecida por intermédio de critérios e parâmetros objetivos, de funções que já são informalmente exercidas pelo Delegado de Polícia, poderia significar o reconhecimento desta posição como profissão “de fato e de direito”, com o estabelecimento da figura do Delegado-Mediador/Conciliador, que institucionalizaria papéis que já são desempenhados na prática pela autoridade policial, o que, certamente, proporcionaria alívio, de um lado à tensão social intensificada pela demanda por resolução dos conflitos penais, e de outro liberando o sistema penal tradicional para atuar com mais propriedade onde isto seja realmente indispensável, necessário ou útil, o que representaria um avanço para o sistema penal como um todo.

 


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