Vídeos Fotos Notícias

31/07/2013 - 16:30:34

OPINIÃO

Pilotos de Zeppelin

Jorge Pontes debate sobre a questão das drogas e o enfrentamento pela Polícia Federal

  • Revista Prisma
  • Jorge Barbosa Pontes

   

Qualquer pessoa que se atenha um pouco mais às discussões atualmente em curso sobre o problema que a humanidade enfrenta com o consumo de drogas, perceberá sem muita dificuldade que posições mais corajosas vêm sendo paulatinamente assumidas e algumas mudanças de maior ângulo estão finalmente a caminho.

 

Em artigo intitulado “Enfrentar ou liberar as drogas?”, recentemente publicado no O Globo, o Deputado Federal Osmar Terra, autor da proposta que, em curso no Congresso Nacional, tenciona aumentar a reprimenda penal do usuário de drogas, parte do princípio equivocado de que a política de “liberar” se contraporia a de “enfrentar” o flagelo das drogas.  

 

Depois de vinte e cinco longos anos como policial federal, sendo oito como agente e dezessete como delegado, nos quais ocupei funções como Chefe de Operações, Chefe de Divisão, Superintendente Regional, Coordenador-Geral, Diretor da Interpol no Brasil, Adido Policial em Paris/França e membro eleito do Comitê Executivo da Interpol, alcancei um ponto de amadurecimento crítico que me permite afirmar que o combate ao tráfico de drogas, da forma como é operado hoje em dia, consiste em um redondo equívoco, para não dizer uma grande trapaça.    

 

Sinto muito em assumir perante alguns dos meus bravos e bem intencionados colegas de turma que atuam ou atuaram a vida toda na temida e honrada DRE – Delegacia de Repressão a Entorpecentes, que daqui a uns 60 anos – talvez menos - eles serão lembrados da mesma forma que hoje rememoramos os pilotos de Zeppelins.  

 

Como policiais de juramento prestado, sempre buscamos cumprir nosso dever legal, sem maiores questionamentos de natureza filosófica, mas hoje, contudo, após me submeter a uma espécie de exercício de “desentranhamento ideológico”, não consigo deixar de enxergar com clareza que a repressão às drogas consubstancia-se numa enxugação de gelo, numa batalha perdida que travamos contra nós mesmos, e que talvez alveje mais inocentes do que culpados de alguma coisa.

 

Desde que o homem é homem ele se droga. Existe um percentual da humanidade que, infelizmente, e por diversas razões, sempre procurará os entorpecentes, seja por fraqueza, seja por fortaleza, seja para fugir, ou para se encontrar, por esperança em algo ou desesperança em tudo. Grande parte dos seres humanos tem a natureza de experimentador, de viajante em si mesmo.

 

Para simplificar, haverá sempre homens e mulheres dispostos e com necessidade de ingerir drogas, e, por conseguinte, haverá sempre aqueles que enfrentarão a espada da lei para fornecer, para atender a demanda de consumo. O Estado, por intermédio da lei antidrogas, se interpõe, intrometendo-se numa relação totalmente consentida e desejada entre fornecedor e consumidor. É nesse ponto que subexiste o anacronismo da proibição.              

 

A criminalização generalizada da questão foi um equívoco, uma estrada errada, um rumo que precisaria começar a ser reparado o quanto antes. A proibição é o gatilho para o fenômeno do tráfico e, obviamente, é a mãe da repressão, da chamada guerra às drogas. Mas as consequências da proibição talvez sejam muito mais devastadoras e prejudiciais do que se pode imaginar.

 

Decerto que os efeitos da liberação ou descriminalização serão duríssimos para a sociedade, contudo, infinitamente menos nocivos do que as consequências da proibição e da repressão. Não será uma decisão fácil e simples, e certamente importará em muita discussão, reflexão, estudos e projeção de cenários.

 

Como policial federal com um quarto de século de experiência posso afirmar que a proibição, ao deflagrar o comércio ilegal, gera uma infinidade de delitos “de suporte” ao tráfico de entorpecentes. Sem a pretensão de esgotar o rol de condutas, posso citar como tais crimes “de suporte” o tráfico de armas de fogo, corrupção de menores, homicídios, furtos, roubos, lavagem de fundos, corrupção de policiais, juízes e políticos, e muitas outras ofensas que são cometidas para garantir e suportar o comércio criminoso de drogas.

 

O tráfico de drogas é uma modalidade criminosa transversal a várias outras atividades, acarretando, catalizando e potencializando outras condutas. A descriminalização das drogas implodiria toda uma plataforma nefasta que é suportada e influenciada pelo tráfico.

 

Numa outra vertente não menos desastrosa observamos que a proibição deu causa a própria existência de drogas alternativas, mais acessíveis em temos mercadológicos, e, por conseguinte, muito mais devastadoras para a saúde. Muitas das drogas sintéticas nasceram, de uma forma ou de outra, a partir da proibição propriamente dita. O crack, por exemplo, como subproduto da cocaína, alastrou-se como uma praga nas grandes cidades brasileiras após o sucesso da política de controle de precursores químicos utilizados para o refino da cocaína. A droga dita “batizada” é mais mortal ainda, e, de certa forma, gerada em razão da própria proibição.

 

E, por fim, uma das piores consequências do combate ao tráfico de drogas: sua natureza “distrativa”. Há quatro décadas a Polícia Federal “se distrai” perseguindo traficantes de maconha no sertão nordestino e cocaína no Norte, Centro-Oeste e Sudeste, enquanto poderia estar destinando mais atenção e recursos para as investigações de fraudes faraônicas cometidas com dinheiro público, buscando os rastros de desvios de verbas públicas, de lavagem de capitais e de corrupção de políticos e altos funcionários públicos dessas mesmas regiões.

 

Em algumas importantes unidades da Polícia Federal no Nordeste do Brasil, uma grande parte dos canais de interceptação telefônica é utilizada para reprimir tráfico de maconha de baixa qualidade e em quantidades invariavelmente inexpressivas.  Impende seja registrado que a maioria das pessoas envolvidos na condução dessa guerra às drogas é gente idealista, bem intencionada e que acredita no que faz.

 

É a repressão a entorpecentes sendo usada como boi de piranha. Seria um grande lucro para a sociedade se substituíssemos a DRE pela DRCP (Delegacia de Repressão a Corrupção Política), pela DRDVP (Delegacia de Repressao ao Desvio de Verbas Publicas), pela DRLDCE (Delegacia de Repressao a Lavagem de Dinheiro e Crimes Eleitorais) e pela DRCA (Delegacia de Repressão aos Crimes Ambientais), atividades que protegem interesses difusos, coletivos e que trariam lucros e benefícios para a sociedade.

 

Tenho fortes suspeitas de que essa atividade “distrativa” vem sendo alimentada há décadas, de cabeça pensada, por aqueles que fazem passar a boiada ao largo do boi de piranha.

 

Devemos lembrar que a “indústria da proibição” é uma atividade lucrativa e não é a toa que o bicheiro Carlinhos Cachoeira, por intermédio do seu amigo senador, se empenhava de forma ferrenha contra a legalização dos jogos de azar.

 

No Brasil a corrupção é um flagelo muito mais antigo, profundo, aviltante e deletério do que o problema das drogas, e, por mais estranho que possa parecer, em Dezembro de 2011, das 514.000 pessoas presas nas prisões do país apenas 632 cumpriam pena por corrupção, isto é, pífios 0,12%. Quem lê esses números pode até pensar que está diante de estatísticas da Noruega. O reforço na repressão aos crimes de corrupção certamente irá engrossar esse percentual, e, consequentemente, funcionará como elemento intimidador, diminuindo também a incômoda sensação de impunidade amargada pela imensa maioria de brasileiros decentes.

 

Com mais repressão a tais crimes e mais divisas recuperadas e poupadas, muitos programas de apoio a viciados poderiam ser levados a cabo com sucesso; muitos hospitais poderiam ser construídos e equipados.  Se pararmos de gastar o equivalente a três pontes para construirmos uma só ponte; se diminuirmos a crônica incidência de fraudes nas licitações públicas, muitos recursos sobrariam para projetos de apoio e tratamento aos usuários de drogas.

 

Isso sem falar que, segundo censo recente, 25% da população carcerária brasileira seria originária de transgressores às leis antidrogas, de traficantes. Abriríamos espaço nas cadeias para alojar mais criminosos violentos e políticos corruptos.

 

 Afirmo que a guerra às drogas é uma tolice da mesma magnitude da malfadada Lei Seca, que vigorou de 1920 a 1933 na América. Tudo que a guerra às drogas acarreta de negativo, como efeito colateral, foi experimentado pela Lei Seca, sem tirar nem por.       

 

E o álcool sabidamente mata milhões de pessoas no mundo e é liberado em quase todos os países. O comércio de bebidas alcoólicas tem suas limitações de consumo, como parâmetros limitadores de teor alcoólico, proibições de ingestão em via pública e de venda para menores de idade. Os países arrecadam centenas de milhões de dólares em impostos pela venda de bebidas e, ao mesmo tempo, experimentam um rombo gigantesco com a manutenção de uma guerra sem fim às drogas.

 

Uruguai, Portugal, Reino Unido, Países Baixos, Guatemala e os estados do Colorado e Washington, nos EUA começaram a ensaiar, com variações, mudanças nesse tema. O que estamos esperando para iniciar um debate rigoroso, ousado e sem patrulhamento, sobre o insucesso do modelo atual?

 

A droga é um problema a ser incessante e permanentemente endereçado por políticas, ações sociais, educacionais e assistenciais, e não por uma guerra militarizada e desenfreada que acarreta danos colaterais de altíssimas proporções e mais prejuízos do que o próprio objeto guerreado.    

 

Tenho absoluta certeza de que devemos seguir orientando os jovens brasileiros para que fiquem longe de drogas, álcool e tabaco, em salvaguarda de suas saúdes física e mental, assim como devemos reforçar o apoio e recuperação daqueles que sucumbem a tais vícios.

 

Para esse assunto ser submetido a uma ampla discussão precisaríamos da iniciativa de politicos sérios, bem intencionados e sem comprometimento com interesses espúrios. Entretanto, verdades como estas parecem que não foram feitas para serem ditas. A sociedade veste máscaras que de tão bem ajustadas aparentam ser impossíveis de arrancar, e nos faz crer, erradamente, que para sacá-las teríamos de levar junto o nosso próprio rosto.

 

 

 


Faça login no Espaço do Associado para dar sua opinião e ler os comentários desta matéria.

REDES SOCIAIS


Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal
SHIS QI 07 conj. 06 casa 02 - Lago Sul
Brasília/DF - CEP 71.615-260
Central de Atendimentos: 0800.940.7069