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31/12/2013 - 10:45:59

ENTREVISTA

Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

O delegado da PF Daniel Josef Lerner fala sobre seu trabalho com a investigação de mortos e desaparecidos na Comissão Nacional da Verdade

  • Revista Prisma
  • Vanessa Negrini

   

|ENTREVISTA

De VANESSA NEGRINI

PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA, PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA

O delegado da Polícia Federal Daniel Josef Lerner fala sobre seu trabalho com a investigação de mortos e desaparecidos na Comissão Nacional da Verdade

|Qual o objetivo da Comissão Nacional da Verdade?

O objetivo principal da Comissão Nacional da Verdade é o de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas durante o período da ditadura no Brasil, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica.

De um modo resumido, podemos dizer que sociedades que emergem de um período de autoritarismo armado praticado pelo Estado devem enfrentar não somente um processo de transição em direção ao restabelecimento de uma institucionalidade política estável e democrática, que já vivemos, mas também passar por um processo de reconhecimento e esclarecimento dos fatores que levaram à degeneração do Estado democrático, dos meio violentos sistematicamente empregados por ele e, especialmente, do legado de graves violações de direitos humanos deixado ao longo do período.

Esse constitui o campo teórico fundamental da Justiça de Transição, no qual as Comissões Nacionais de Verdade se inserem. Não é o caso apenas do Brasil, mas também de outros países da região, como Argentina e Chile, que já tiveram suas experiências exitosas de Comissão de Verdade.

É também o caso da África do Sul, de Nelson Mandela, morto no último dia 5 de dezembro. Dentre as primeiras ações de Mandela como presidente da África do Sul, em 1994, esteve a criação da Comissão Verdade e Reconciliação, um marco simbólico importante para o término da era de segregação racial, do apartheid, naquele país. Isso revela a dimensão política de processos coletivos de reflexão e de esclarecimento dessa natureza, consubstanciados nas Comissões de Verdade.

Para a Polícia Federal (PF), acredito que o tema interesse não só enquanto autocrítica, pelo passado de colaboração do Departamento com o regime militar, mas, especialmente, com vistas ao futuro. Nesse sentido, remeto-me aos importantes avanços que obtivemos em direção à profissionalização do órgão e de seu contínuo aprimoramento como um valor consolidado de gestão.

Quer dizer, para sermos uma polícia apta a fazer e formular a segurança pública numa perspectiva de política de Estado não é necessário apenas que sejamos independentes em relação a governos, mas também em relação a qualquer traço de legado autoritário que, porventura, possa remanescer entre nós desde o período da ditadura no Brasil.

Em outras palavras, acredito que os valores da profissionalização e do planejamento, que crescentemente passaram a orientar a PF, e o reconhecimento público que adveio disso, devem necessariamente estar atrelados à função de proteção e guarda de direitos e garantias individuais, sempre orientados por standards cada vez mais exigentes de defesa e respeito aos direitos humanos. É nesse sentido que a função de polícia é uma função eminentemente democrática e, portanto, legítima.

|Como funciona e qual a estrutura da Comissão?

A Comissão funciona sob a forma de órgão colegiado, com sete membros, escolhidos de forma plural, provenientes de diferentes áreas de atuação profissional e de diferentes segmentos da sociedade brasileira, todos designados pela Presidente da República.

Há membros que atuaram ou participaram de cada um dos governos democráticos havidos no Brasil, a partir de 1985. Da mesma forma há, ou já passaram pela Comissão, juristas provenientes da advocacia, da magistratura, do Ministério Público Federal, e também professores e pesquisadores universitários, consultores honorários e pessoas engajadas na defesa dos direitos humanos de um modo geral.

Além do colegiado, a Comissão conta com uma assessoria enxuta, dividida em grupos de trabalho temáticos, que atuam sob a coordenação de gerentes de projeto. Há, ainda, uma secretária-executiva e uma equipe administrativa, bastante engajada, e pesquisadores autônomos contratados por meio de parceria com o PNUD, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

|EXUMAÇÃO. O delegado Daniel Lerner descobriu o possível local de enterro do líder político maranhense Epaminondas Gomes de Oliveira analisando documentos sobre a Operação Mesopotâmia, realizada pelo Exército, em agosto de 1971, para prender opositores na divisa entre Maranhão e Goiás.

|Existe um prazo específico para a Comissão apresentar o trabalho final? Como está o andamento dos trabalhos?

A Lei 12.528/2011 definiu um prazo de 2 anos para a conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a partir da data de sua instalação. Esse prazo corresponde a maio de 2014. Há, contudo, a expectativa de que o prazo possa ser prorrogado, eventualmente, por mais 6 meses.

O andamento dos trabalhos está avançado e, desde novembro, já trabalhamos com vistas à confecção do relatório final. Sem deixarmos de lado a intensa agenda de atividades públicas que os membros da Comissão cumprem.

|Como o cidadão pode colaborar com os trabalhos da Comissão? É garantido o anonimato?

Todos os cidadãos podem e, se quiserem, devem colaborar com os trabalhos da Comissão. Isso é muito importante para a Comissão Nacional da Verdade por diferentes razões. A primeira razão, e mais importante, é que uma das finalidades precípuas das Comissões Nacionais de Verdade é, justamente, a de dar voz aos cidadãos, de dar voz às vítimas para que possam relatar as violências que sofreram.

Não é raro que chegue até a Comissão, por exemplo, não somente o relato de uma vítima direta, que sofreu torturas ou prisão arbitrária, mas também o de familiares de desaparecidos políticos, que até hoje aguardam uma resposta oficial sobre o paradeiro e as circunstâncias da morte e desaparecimento de um ente próximo, geralmente pais, mães ou irmãos.

O espaço de escuta das Comissões Nacionais de Verdade atende, portanto, não apenas à finalidade de coleta de informações, mas, também, ao critério de dar voz às vítimas. Não permitir que casos de grave violência do passado fiquem silenciados é uma forma de garantir respeito à dignidade e à vida humanas no presente.

Nesse sentido, a colaboração dos cidadãos é importante não apenas por contribuir para que a Comissão Nacional da Verdade faça um relatório consistente, baseado em fatos concretos, mas também para a construção de uma memória social que, ao evitar o silêncio e o esquecimento coletivos sobre casos de grave violência, contribui para a não repetição e para a construção de uma cidadania participativa. Por essa e por outras razões é que o conceito de memória situa-se em posição central no âmbito da Justiça de Transição e das Comissões de Verdade.

Nos termos da Lei 12.528/2011 é garantido o sigilo, e não o anonimato. A Comissão Nacional da Verdade conta com um serviço permanente de Ouvidoria e de recebimento de manifestações ou petições via postal. Todas essas informações podem ser encontradas no site da Comissão: www.cnv.gov.br.

|O que já foi possível apurar até o momento?

Todos os grupos de trabalho temáticos da Comissão fizeram apurações novas e importantes. Isso implica não só em descobertas inéditas sobre casos de mortos e desaparecidos políticos, tratados como prioritários, mas também na identificação de padrões e de estruturas utilizados pela repressão, na identificação de agentes perpetradores, na com- preensão do modo como certas deformações autoritárias foram incorporados às nossas instituições democráticas a partir do período da ditadura, dentre outros.

Um aspecto muito relevante para a Comissão Nacional da Verdade, para além das pesquisas e das apurações, predominantemente calcadas em documentos oficiais que foram encontrados, é o aspecto de difusão da cultura de respeito aos direitos humanos. Ou seja, tão importante quanto o relatório escrito a ser entregue pela Comissão Nacional da Verdade é o processo de reflexão e de crítica sobre o período da ditadura desencadeado a partir da instalação da Comissão.

Nesse sentido, é notável a quantidade de outras comissões estaduais, municipais e setoriais criadas a partir do advento da Comissão Nacional da Verdade. São mais de 80 comissões de verdade que, além de contribuírem com a pesquisa da Comissão Nacional, atendem a finalidade de conscientização, debate, reflexão. São inúmeras atividades e audiências públicas que envolvem não só as próprias comissões e seus membros, mas também universidades, sindicatos, grupos sociais específicos, cidadãos interessados, jovens que não viveram o período. Não foi à toa que a Lei que instituiu a CNV previu que todas as atividades desenvolvidas pela Comissão deveriam, via de regra, ser públicas.

Outro aspecto importante desencadeado a partir da criação da Comissão Nacional da Verdade diz respeito à disseminação de políticas de memória associadas a nova utilização de locais e prédios públicos. Ou seja, a identificação e a destinação de espaços públicos antes usados para prisões arbitrárias, torturas e mortes, como os DOPS e os DOI-CODIs, a fim de que possam ser instala- dos locais de preservação de memória histórica, como museus, memoriais, centros culturais.

|O que será feito com o relatório final da Comissão? Haverá punição dos responsáveis pelos crimes? Ou já prescreveu?

Ao final do prazo para os seus trabalhos, a Comissão Nacional da Verdade deverá entregar à Presidência da República um relatório circunstanciado, contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, suas conclusões e recomendações.

Conforme a Lei 12.528/2011, as atividades da Comissão não terão caráter jurisdicional ou persecutório. Dessa forma, não faz parte do escopo legal da CNV a punição jurídica dos responsáveis pelos crimes.

A partir do levantamento circunstanciado de crimes e de suas respectivas autorias, entretanto, nada impede, em tese, que o material produzido pela Comissão possa ser utilizado por outra autoridade pública que detenha esse munus de persecução judicial.

Quanto à prescrição, é necessário fazermos a análise de cada caso concreto. Há que se considerar nessa análise, dentre outros, se os crimes foram praticados antes ou após a promulgação da Lei de Anistia, em 1979, se há crimes de natureza imprescritível ou não. Há crimes posteriores à promulgação da Lei de Anistia, por exemplo, como o atentado do Riocentro e algumas das chamadas Operações Limpeza, feitas com o propósito de garantir a ocultação definitiva de cadáveres de opositores do regime militar. O crime de ocultação de cadáver, por exemplo, é tido como um crime de natureza permanente, que não cessa enquanto não cessar a intenção de ocultação. Ou seja, não haveria prescrição para esse tipo de caso.

É um quadro complexo, sui generis, que envolve a aplicação de conceitos em evolução e que não pode prescindir de uma análise caso a caso, o que envolve o estabelecimento preciso da data do cometimento do crime, da pena prevista em abstrato etc.

Por fim, discute-se a imprescritibilidade da tortura e de crimes de lesa-humanidade o que permite, em tese, reposicionar em nosso ordenamento jurídico as perspectivas de prescrição e, eventualmente, de punição a agentes da repressão que tenham cometido graves violações de direitos humanos.

|Especificamente sobre o grupo de trabalho de mortos e desaparecidos políticos, como tem sido o trabalho da Comissão?

O grupo de trabalho sobre mortos e desaparecidos políticos, no qual atuo, lida com a necessidade de adoção de frentes prioritárias de investigação, ou seja, parte para a realização de diligências em campo daqueles casos nos quais a Comissão Nacional da Verdade obteve indícios novos mais robustos.

É importante deixar claro que absolutamente todo o conjunto de casos de mortos e desaparecidos é pesquisado, especialmente quanto à base documental, testemunhal e bibliográfica de que dispomos, mas nem sempre as informações que obtemos são suficientes para adotarmos novas linhas de investigação em campo.

É um conjunto de aproximadamente 400 casos de mortos e desaparecidos que tratamos de forma absolutamente isonômica.

Uma fonte muito importante é a proveniente das contribuições que recebemos diretamente dos cidadãos. Há fatos inéditos importantes advindos das informações que recebemos dessa forma. Às vezes, são pessoas que se dedicaram por anos a consolidar dossiês completos de seus casos ou de amigos e familiares.

Além dos trabalhos de campo, a partir da leitura de milhares de documentos, conseguimos alguns achados novos importantes, que ajudam a elucidar ou a confirmar as versões até agora existentes para casos de mortos e desaparecidos políticos brasileiros.

Toda a base de informação de que dispomos, é importante dizer, deve-se, em grande medida, ao trabalho incansável dos familiares de mortos e desaparecidos políticos que lutam, há 40 anos, pelo não esquecimento de seus entes. Esse compromisso, de não deixar a morte e o desaparecimento de pessoas esquecidos pelo Poder Público e pela sociedade, tão caro à realização de valores de democracia e de respeito à dignidade da vida humana em nosso país, impõe ao grupo de trabalho o dever de não desacreditar qualquer pista possível.

|Qual a expectativa da Comissão na exumação do presidente Jango?

A exumação do ex-presidente João Goulart, assim como outras exumações de que a Comissão Nacional da Verdade tem participado, foi motivada por um pedido da própria família. É a família que detém, inicialmente, os direitos sobre os restos mortais de uma pessoa, tanto pelo viés imaterial da memória e da imagem, no campo do direito da personalidade, quanto pelo viés material, da disposição dos restos mortais de um familiar.

Dessa forma, a família Goulart apresentou pedido de exumação e investigação à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e, posteriormente, à Comissão Nacional da Verdade, quando esta última foi criada.

Há, de fato, a expectativa de que, por meios e técnicas periciais avançados possa haver, eventualmente, a comprovação científica da morte como decorrente de causa não natural. Como é sabido, há muitas dúvidas acerca da real causa da morte do ex-presidente João Goulart, até hoje envolvida em penumbra. A própria família do ex-presidente ostenta e defende isso.

Por outro lado, é inegável que a exumação ocorre após um longo período de avanços nas investigações – não só pela Comissão Nacional da Verdade, mas por uma miríade de atores políticos e de militantes e envolvidos –, acerca das atividades da chamada Operação Condor, que uniu diferentes ditaduras da América do Sul em torno de objetivos comuns de repressão e de extermínio de lideranças políticas contrárias aos seus regimes de exceção então vigentes.

De qualquer forma, independentemente do resultado técnico do trabalho pericial, a exumação apresenta um valor simbólico importante em si mesmo, seja pela sinalização do alcance do processo de justiça de transição vivida no Brasil, seja pelo destravamento na investigação de outros casos de mortos e desaparecidos políticos brasileiros, menos ilustres, que a ação tende a gerar. Não podemos esquecer, é claro, que se trata de um presidente da República democraticamente eleito cuja derrubada pelas Forças Armadas marcou o início da ditadura no Brasil. É emblemático.

|Há quem defenda que devem ser investigados tanto os crimes cometidos pelo Estado quanto pelos militantes. Porque esse não é o foco da Comissão?

É preciso esclarecer que, quando falamos em graves violações de direitos humanos, em sentido técnico, falamos de violações praticadas pelo Estado contra os seus cidadãos. Quer dizer, quando um cidadão comete um ato de violência contra outro, ainda que extremo, isso não será enquadrado, no campo teórico e legal que orienta as Comissões de Verdade, no âmbito do conceito de grave violação de direitos humanos.

Essas situações, ainda que graves, serão tratadas como crimes comuns: homicídio, sequestro, lesão corporal. Os opositores do regime militar que cometeram esses crimes foram, inclusive, durante o período do regime militar, presos e processados por tais atos, ainda que sob a vigência de uma legalidade muito mais aparente do que substancial.

Quando do advento da Lei de Anistia, por exemplo, muitos dos opositores que ainda estavam presos pelo cometimento de tais atos foram postos em liberdade. Outros, que então retornaram do exílio, não raro haviam se exilado justamente por temerem ser mortos a partir das prisões que tinham decretadas contra si. Como eu disse, não deixou de haver o processamento formal de tais condutas, ainda que não raramente findos com a aplicação de penas capitais arbitrárias e veladas.

Nesse campo de violência recíproca, a categoria graves violações de direitos humanos serve, repetimos, para identificar o legado de regimes autoritários que lançaram mão de violência excessiva e ilegal contra seus opositores sob a forma de uma prática sistemática. É importante frisar que essa noção da bilateralidade das investigações, nunca foi uma opção política que estivesse, de fato, ao alcance da Comissão Nacional da Verdade brasileira.

Essa foi uma decisão política tomada a priori, quando optou- se por constituir uma Comissão Nacional da Verdade em nosso país. Como dito, é essa a natureza essencial das Comissões de Verdade, a de apurar os crimes praticados pelo Estado contra os seus cidadãos.

|Qual a importância da participação de um delegado de polícia federal na Comissão?

Como policial federal, fico muito satisfeito de podermos participar da Comissão Nacional da Verdade. Acredito que isso seja fruto da respeitabilidade que a Polícia Federal conquistou em anos recentes.

Quero dizer, também, que é importante que a Polícia Federal seja capaz de contemplar, preservado o seu valor orientador de independência, a possibilidade de participação de seus servidores em espaços públicos e de governo. Já é assim com outras carreiras federais, como a diplomacia, a advocacia e a procuradoria da União, dentre outros. Isso permite não só aportar a essas instâncias a expertise e os valores republicanos do DPF, mas também trazer ao Departamento outras experiências e conhecimentos profissionais. É o caso da Comissão Nacional da Verdade, uma instituição transitória que envolve conceitos ainda novos e desafiadores no campo do Direito e dos Direitos Humanos e que lida, eminentemente, com a investigação de crimes.

Por fim, fico à disposição dos colegas que queiram contribuir com informações úteis às investigações da Comissão ou, simples- mente, queiram obter mais informações sobre o trabalho que está sendo realizado. Para tanto, deixo o e-mail: daniel.djl@dpf.gov.br, além do site www.cnv.gov.br e da página da Comissão Nacional da Verdade, no Facebook, à disposição.

“Para sermos uma polícia apta a fazer e formular a segurança pública numa perspectiva de política de Estado não é necessário apenas que sejamos independentes em relação a governos, mas também em relação a qualquer traço de legado autoritário que, porventura, possa remanescer”
 


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