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18/07/2014 - 09:59:14

MANIFESTAÇÕES

Entre a Lei e a Ordem

Como deve ser a atuação policial junto aos movimentos sociais em tempos democráticos?

  • Revista Prisma
  • Vanessa Negrini

   

Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. A Constituição de 1988 trouxe consigo uma série de direitos e garantias até então negados ao cidadão.

 

Dentre eles, o direito de protestar pacifica e livremente. Assim, em tempos de democracia, em vez de reprimir, a polícia assume o papel de garantir que esse direito seja exercido com segurança tanto para os participantes quanto para a população em geral. Para isso, é essencial que o Estado atue nessa transição de papéis, preparando e capacitando seus quadros.

 

Se a presença da polícia nas manifestações pode causar algum desconforto, sua ausência poderia resultar em desastres. O problema é que nem toda manifestação ocorre dentro da normalidade esperada. No final de maio, um grupo de indígenas armados com arcos e flechas – contrariando o pré-requisito constitucional de reunir-se “sem armas” – chegou a atingir um policial militar durante manifestação na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

 

Outras vezes, são manifestantes pegos munidos com bastões, pedras e até mesmo bombas caseiras, que vão às ruas com intenção deliberada de tumultuar os movimentos. A polícia deve estar preparada para reagir nestes casos, com força suficiente para contornar a situação, mas sem extrapolações. Uma medida nem sempre fácil de encontrar no calor de conflitos.

 

Ademais, numa cidade como São Paulo, por exemplo, com 11 milhões de habitantes, numa manifestação com a participação de 200 mil pessoas, a polícia tem a complexa tarefa de garantir a liberdade dos manifestantes, mas também dos não manifestantes, que querem ir e vir e continuar com suas vidas e afazeres. É a velha história do “seu direito acaba onde começa o do outro”, que nem sempre é respeitada, sendo a polícia necessária para assegurar esse equilíbrio.

 

A exigência de prévio aviso às autoridades competentes tem sua razão de ser. Supondo, por exemplo, que uma manifestação em defesa da comunidade afrodescendente seja realizada no mesmo local e data de um movimento contra as cotas raciais nas universidades e concursos públicos. As chances de conflitos entre os dois grupos seriam enormes.

 

Em tempo de Copa do Mundo, os protestos estão dividindo as opiniões. Quem é contra se acha no direito de protestar, mas há também quem reivindica o direito de ir aos estádios com segurança e ver os jogos, sem ameaça dos manifestantes. Pensando nessa multiplicidade de opiniões, própria das democracias, o texto constitucional também foi sábio ao exigir que uma reunião não frustre a outra. Mesmo assim, não há como evitar de um grupo “invadir” a manifestação de outro.

 

Provocações de ambos os lados podem acabar em vias de fato senão houver a presença preventiva da polícia.

 

|APRENDIZADO. O antagonismo entre forças policiais e movimentos sociais, em boa medida, decorre de uma situação histórica recente no país. Mas hoje é necessário que instituições policiais e movimentos sociais busquem a construção de novas formas de relacionamento, com foco no respeito mútuo e na paz social. Essa coexistência passa necessariamente pela compreensão do papel institucional das polícias e do lugar social dos movimentos populares.

 

O coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (NEVIS) da Universidade de Brasília (UnB), Arthur Trindade Maranhão Costa, reconhece que, nos últimos 20 anos, as polícias brasileiras aprenderam a lidar com alguns movimentos sociais.

 

A Academia Naciona de Polícia, da Polícia Federal, por exemplo, aumentou para 14 horas/aulas o conteúdo de Ética e Direitos Humanos. Nessa disciplina, os futuros policiais têm a oportunidade de discutir o verdadeiro papel da polícia como protagonista na defesa dos direitos humanos.

 

Para ele, diferentemente dos conflitos e incidentes registrados na década de 1990, hoje são raros os incidentes entre polícias e sindicatos. “Veja o caso do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], são cada vez mais raros os incidentes em que há abuso de violência e arbitrariedade. É claro que ainda há problemas, mas não podemos negar que já há um longo e importante aprendizado. O que é bom para todos”, afirma.

 

No entanto, segundo o professor, esse aprendizado acumulado nos últimos anos vale apenas para os antigos movimentos sociais. O pesquisador explica que os novíssimos movimentos sociais têm características muito distintas, não necessitam de partidos, sindicatos ou antigas estruturas para mobilizar grupos e populações. Isso agora é feito por meio das redes sociais.

 

“Não há mais necessidade uma liderança única, bem estruturada para mobilização de grandes contingentes. O que gera um problema para as polícias: como negociar se não há mais uma ou duas lideranças? Há dezenas de lideranças e grupos relativamente autônomos, cujas pautas e estratégias são distintas”, questiona.

 

Outra característica destes novíssimos movimentos sociais, apontada por Arthur Trindade, é a rapidez com que eles conseguem mobilizar as populações. Se antes, levava-se algumas semanas para organizar uma manifestação, agora leva-se horas.

 

“Isso gera outro problema para as polícias no que refere-se ao planejamento das ações. O que não significa que estes movimentos sejam imprevisíveis. Apenas que seguem uma lógica diferente”, aponta.

 

A velocidade de organização e a ausência de lideranças aparentes desses movimentos acabam afrontando outro pré-requisito constitucional para a livre manifestação: o prévio aviso à autoridade competente.

 

A ressalva se justifica para que seja providenciada a estrutura necessária para garantir a segurança e bem-estar dos próprios participantes e da população em geral, como o desvio de trânsito e sinalização, presença de policiais para garantir a ordem, corpo de bombeiros e ambulâncias para socorrer alguém que passe mal.

 

|CONTRADIÇÕES. Conforme o pesquisador da UnB Arthur Trindade, os novos movimentos surgiram em diversos países como EUA, Inglaterra, Espanha, Irlanda, Tunísia, Egito, Turquia e Brasil e vão surgir em outros lugares também.  

 

As polícias destes países tem tentado lidar com esta novidade. Em alguns casos, tentou-se proibir ou limitar o uso da internet. Não deu certo. Os ativistas receberam apoio de ciberativistas de outros países, e mantiveram sua capacidade de mobilização. Noutros lugares, como Inglaterra, em vez tentar limitar o acesso à internet, as polícias decidiram utilizar as redes sociais para se comunicar com os manifestantes.  

 

“Aparentemente, isso tem dado melhores resultados. As polícias estão novamente tendo que aprender a lidar com a realidade”, afirma.

 

|CONTRADIÇÕES. Para Arthur Trindade, as atividades de manutenção da ordem e de controle da criminalidade não são, necessariamente, contraditórias ao respeito do “Estado de Direito”. Tudo depende da forma com o controle social está estruturado, especialmente as atividades coercitivas do Estado. “Podemos notar que nos regimes democráticos o protagonismo da coerção estatal tem recaído cada vez mais sobre o Sistema de Justiça Criminal (SJC)”, sugere.  

 

No entanto, conforme enfatiza o professor Arthur Trindade, para se migrar de uma estrutura de controle cuja coerção é baseada principalmente na atuação ostensiva da polícia para uma nova estrutura centrada na atuação do SJC, não basta reformar as polícias. “É preciso reformar também o Ministério Público e o Judiciário. Promotores e juízes precisam prestar contas das suas ações. O trabalho destas instituições precisa ser avaliado em termos de eficiência, eficácia e efetividade”, afirma o pesquisador.

 

|GREVE POLICIAL. Nos últimos anos o Brasil conheceu ainda outro tipo de movimento paredista, inimaginável há três décadas: a greve de policiais. Conforme Arthur Trindade, existem greves de policiais em todos os países democráticos. Estas greves opõem governos e policiais.

 

As reinvindicações não são muito diferentes: melhores salários e condições de trabalho. “No Brasil, entretanto, muitos destes movimentos paredistas explicitam outra tensão. Nas últimas décadas, observou-se o acirramento dos conflitos entre os policiais que ocupam a alta e a baixa hierarquia das polícias brasileiras”, explica.

 

De acordo com o coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da UnB, a redemocratização do país acentuou estas tensões. Nas Polícias Militares estaduais, o conflito entre oficiais e praças tem levado a greves, que às vezes resultam em crises institucionais, uma vez que a Constituição Federal de 1988 não permite que os militares se associem em sindicatos.

 

Nas policiais civis e federal, a situação não é muito diferente. São frequentes os conflitos entre agentes e delegados. “Neste caso, a existência de sindicatos de policiais civis, de certa forma, tem evitado que tais conflitos terminem em crises institucionais”, afirma.

 

|VIOLÊNCIA. Os confrontos entre polícia e manifestantes tem levantado novamente o debate quanto à violência policial. Para Arthur Trindade, há muitos motivos que levam um policial a ser violento: educação, família,  cultura. No entanto, segundo enfatiza, as instituições policiais também podem ser violentas, na medida em que não inibem as violências individuais e, às vezes, as incentivam. O especialista defende que policiais violentos e corruptos devem ser expulsos das corporações, mas destaca que algumas práticas violentas são recorrentes, independentemente do histórico do policial, portanto, dizem respeito muito mais a instituição do que ao indivíduo.

 

Pelo lado dos profissionais da segurança também há uma série de queixas e ressentimentos. Os policiais acusam entidades de direitos humanos e imprensa de apenas enxergarem o lado do infrator. Muitos se esquecem de que o policial também acaba sendo vítima no seu dia a dia profissional. No Rio de Janeiro, parentes e amigos de policiais mortos em atuação organizaram um protesto para sensibilizar a população desse outro lado da moeda.

 

|DESMILITARIZAÇÃO. Ao lado do discurso contra a violência policial, muito tem se falado sobre a desmilitarização da polícia. No entanto, até o momento, não se apresentou nenhuma proposta efetiva do que seria esse novo modelo.

 

Para Arthur Trindade, é difícil definir o que seja (des)militarização das polícias. “Militarização pode significar muitas coisas: emprego de unidades paramilitares de polícia (como as “SWATs”), o uso progressivo de metáforas de guerra para descrever os métodos de controle social, o maior envolvimento militar em segurança interna e a adoção de modelos organizacionais típicos das Forças Armadas, além de um sistema específico de hierarquia e disciplina”, explica.

 

O pesquisar pontua que a crítica ao modelo de organização militar repousa na ideia de que a disciplina militar impede a polícia de aprender com seus próprios erros; endurece a supervisão sobre os policiais de baixa patente, enquanto a atenua sobre os oficiais; dificulta a comunicação, ao sobrevalorizar a importância da cadeia de comando; aumenta custos sem melhorar resultados. “Acima de tudo, o sistema do “comando e controle” é incongruente com a natureza da atividade policial, pois busca regular de maneira minuciosa o comportamento de indivíduos que são, pela natureza de seu trabalho, obrigados a tomar decisões complexas e imediatas em circunstâncias imprevisíveis”, aponta.

 

No entanto, o pesquisador admite que as polícias de diversos países mantiveram características militares: símbolos, ethos, cultura organizacional. Nestes locais, conforme afirma, percebe-se a substituição do modelo de disciplina militar por um modelo de disciplina policial, baseado na ideia de discricionariedade, responsabilização, supervisão e controle.

 

|MELHOR COM ELA. Em discursos extremos, manifestantes chegam a pedir o fim da polícia, o que remete a embates teóricos clássicos, sobre duas concepções de ver o ser humano e a formação da sociedade. De um lado, o filósofo Jean-Jacques Rousseau apregoa que os seres humanos são naturalmente bons e pacíficos. Para ele, muitos autores se precipitaram ao concluir que o homem é inerentemente cruel e requer um sistema de polícia regular para regenerar-se. Sua teoria do “bom selvagem” contrasta-se com a concepção de Thomas Hobbes, segundo o qual, na natureza, os homens se encontram em estado de guerra, uns contra os outros, sem um poder comum que os mantenha em temor reverencial. Para Hobbes, as pessoas somente poderiam escapar dessa existência infernal se entregassem sua autonomia a um ente soberano: um leviatã, que detém o monopólio do uso da força.

 

Saber se a sociedade atual prescinde da força policial, depende de qual desses teóricos está correto: Rousseau ou Hobbes. Segundo o psicólogo da Universidade Harvard Steven Pinker, se de fato as pessoas são bons selvagens, um leviatã dominador é desnecessário. Se, em contraste, as pessoas são naturalmente perversas, o melhor que se pode esperar é uma trégua precária, mantida graças à polícia e ao exército.

 

Por enquanto, a visão hobbesiana da humanidade parece prevalecer. Neste caso, sendo a polícia necessária, o melhor é caminhar para um patamar onde os policiais se vejam como parte integrante do povo e empreguem seus esforços na sua proteção e defesa. Evoluir para uma sociedade que respeite e valorize seus policiais e que estes se tornem atores protagonistas dos direitos humanos.


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