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18/12/2014 - 12:34:11

OPINIÃO

A exploração e comércio ilegal de fósseis e, especialmente, o seu tráfico internacional, são atividades em franca expansão no Brasil.

Confira o artigo da Delegada Federal Andréa Karine Assunção

  • Revista Prisma
  • Andréa Karine Assunção

   

O patrimônio fóssil de um país tem grande importância geológica, biológica, histórica e econômica. No entanto, tem se observado que a preservação de tais bens não é objeto de preocupação no nosso país.

 

A legislação acerca de fósseis não foi atualizada e o emaranhado de normas dispersas dificulta o trabalho do operador do direito. Esse panorama desfavorece a defesa do nosso patrimônio e tem permitido a impunidade dos “comerciantes” ilegais. Não à toa, foram prolatados, recentemente, alguns julgados no sentido do acolhimento da tese de atipicidade da conduta.

 

Fósseis e Sítios Paleontológicos.

Para discutir essa matéria, é necessário adentrar em alguns conceitos técnicos sem os quais não será possível compreendê-la.

 

Conceituar a paleontologia e o seu objeto de estudo, os fósseis, não é tarefa fácil, eis que os próprios estudiosos da ciência ainda não conseguiram chegar a um consenso.

 

Há, na literatura, diversos conceitos de fósseis que se baseiam, ora, no período histórico, ora, na forma de apresentação do vestígio/resto. Assim, levando-se em conta que são variadas as formas de apresentação dos fósseis, bem como são diversos os períodos de tempo em que se formaram, adoto as conceituações a seguir.

 

“Fósseis (do latim fossilis, tirado da terra) são vestígios deixados por seres que viveram no passado. Esses vestígios podem ser ossos, dentes, pegadas impressas em rochas, fezes petrificadas, animais conservados no gelo, por exemplo. [...]”. Amabis & Martho. Fóssil é “todo resto, vestígio ou resultado da atividade de ser vivo não extinto que tenha mais de 10.000 anos ou, no caso de ser vivo extinto, sem limite de idade, preservados em sistemas naturais, tais como rocha, sedimento, solo âmbar, gelo e outros.” Procurador Federal Dr. Frederico Munia Machado.

 

Por esse prisma, sítio paleontológico é a área delimitada na qual se estuda a paleontologia, ou seja, onde se realizam os estudos dos fósseis. Ou seja, sítio paleontológico é a “área, com limites definidos, de importância paleontológica que, por sua relevância, com base em critérios científicos, históricos, educativos ou culturais, merece ser preservada”3.

 

 

Legislação vigente.

O tipo penal do art. 2º da Lei nº 8.176/91 qualifica como criminosa a conduta de exploração e comercialização de bens da União, sem autorização ou em desacordo com a obtida, conforme se vê abaixo.

 

Art. 2° Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpacão, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.

 

Pena: detenção, de um a cinco anos e multa.

 

§ 1° Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo.”

 

Trata-se de norma penal em branco, uma vez que necessita de complementação do seu preceito primário para integrar o conceito de “bens” e “matéria-prima” pertencentes à União. A Constituição Federal é a fonte integradora do tipo penal, pois informa, no seu art. 20, quais são os bens da União, como se vê abaixo.

 

“Art. 20. São bens da União:

 

I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;

 

II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;

 

III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham,(...)

 

IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; (...)

 

V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva;

 

VI - o mar territorial;

 

VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;

 

VIII - os potenciais de energia hidráulica;

 

IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;

 

X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos;

 

XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.” Como se percebe, a Constituição Federal de 1988 não tratou expressamente dos fósseis e dos sítios paleontológicos quando discriminou os bens pertencentes à União.

 

Com efeito, os sítios arqueológicos são distintos dos sítios paleontológicos. “Os chamados sítios arqueológicos são locais em que esteja determinada a presença, à superfície ou debaixo do solo, de vestígios de ocupação humana, nomeadamente artefatos e estruturas, edificadas ou não.” Por outro lado, a expressão “sítios pré-históricos” se refere aos sítios de determinado período de tempo na história: a pré-história.

 

Certamente, a expressão “pré-histórico” nos remete ao período de tempo anterior à escrita, não se confundindo com paleontológico. Nem todo sítio paleontológico é pré-histórico, uma vez que podem existir fósseis posteriores ao desenvolvimento da escrita.

 

Contudo, pondera, Frederico Munia Machado, “a interpretação jurídica a ser atribuída à expressão “sítios pré-históricos” deve considerar o contexto em que foi incluída no inciso X do artigo 20 da Constituição Federal... não se pode exigir do texto constitucional que as palavras e expressões nele contidas remetam a significados tecnicamente precisos... reconheço ser possível que, na época, tenha-se inserido a expressão “sítios pré-históricos” no texto constitucional com o intuito de incluir, também, os sítios paleontológicos como bens da União. (nota: aparentemente, o legislador constitucional tentou importar expressões semelhantes àquela adotadas pela Lei nº 3.924, de 26/07/1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos).”

 

Há, todavia, uma corrente de pensamento qualificada que entende que os fósseis estariam inseridos dentre os recursos minerais e, portanto, seriam bens da União, por força do inciso IX do art. 20 da Carta Suprema. O ministro Gilmar Mendes externou expressamente essa ideia, ao analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3525/MT. Esse pensamento é alcançado a partir da leitura dos seguintes dispositivos do Decreto-Lei nº 227/1967 (Código de Mineração), que dizem: Art 3º Êste Código regula:

 

I - os direitos sobre as massas individualizadas de substâncias minerais ou fósseis, encontradas na superfície ou no interior da terra formando os recursos minerais do País;

 

Art. 4º Considera-se jazida toda massa individualizada de substância mineral ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da terra, e que tenha valor econômico; e mina, a jazida em lavra, ainda que suspensa.

 

Ao conceituar recursos minerais e jazidas, aquele diploma legal teria equiparado os fósseis às substâncias minerais. De acordo com esse entendimento, os fósseis são recursos minerais e, portanto, bens da União, por disposição constitucional expressa. Logo, a exploração e o comércio ilegal de material fóssil configuram o crime do art. 2º da Lei nº 8.176/91.

 

Entretanto, deve-se atentar para o fato de que o art. 10 do mesmo diploma legal (Código de Mineração) fez distinção entre substâncias e espécimes fósseis ao estabelecer:

 

Art. 10 Reger-se-ão por Leis especiais:

 

(...) II - as substâncias minerais ou fósseis de interesse arqueológico;

 

III - os espécimes minerais ou fósseis, destinados a Museus, Estabelecimentos de Ensino e outros fins científicos; (...)

 

Assim, é de rigor questionar se o dispositivo legal em comento trata de materiais diversos ao distinguir substâncias e espécimes fósseis. Frederico Munia Machado esclarece que “substância fóssil não tem o mesmo conceito de fóssil. Na verdade, substância fóssil é, em linhas gerais, aquela decorrente da mudança química da matéria orgânica a qual foi submetida à pressão e temperatura (soterramento) que, por exemplo, propiciam transformações em hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) ou que concentram cada vez mais o resíduo em carbono (turfa e carvão), não se tratando de uma substância de origem mineral em sentido estrito. Portanto, difere totalmente do “fóssil” que não se caracteriza exatamente pela decomposição de matéria orgânica indefinida, mas pela preservação de determinado ser vivo ou de seus vestígios.”(grifei).

 

Completa, o mesmo Procurador Federal, que “o valor intrínseco das substâncias fósseis é eminentemente econômico. São substâncias que visam, em regra, a geração de energia. Os espécimes fósseis (ao menos aqueles que se destinam a museus e estabelecimentos de ensino), por outro lado, tem valor fundamentalmente cultural e científico, pois servem de referência de identidade para a comunidade local, por exemplo, e de elementos para a aquisição de conhecimento científico sobre a evolução dos seres vivos ao longo do tempo e sobre o processo de formação geológica do planeta”. Assim, para Frederico Munia Machado, os fósseis não constituem recursos minerais.

 

Há também o entendimento de que os fósseis constituem patrimônio

natural e, assim sendo, integram os recursos do subsolo e são, portanto, bens da União, por força do inciso IX do art. 20 da CF/88 (“Art. 20. São bens da União: (...) IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;). Essa tese é sustentada por JALUSA PRESTES ABAIDE para quem, “no Brasil, ainda que de forma não expressa literalmente, estes bens fósseis podem ser considerados como patrimônio natural, e, portanto, integrantes do subsolo e pertencentes à União, nos termos do já citado art. 20.”

 

Inobstante sejam respeitáveis os entendimentos supramencionados, entendo que os fósseis constituem bem da União por outra razão. O fundamento jurídico está estampado no primeiro inciso do art. 20 da CF/88, ao estabelecer:

 

“Art. 20. São bens da União: I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;”

 

Com efeito, os fósseis foram designados propriedade da União desde 1942, com a edição do Decreto- Lei nº 4146/1942, como se pode ver:

 

“Art. 1º Os depósitos fossilíferos são propriedades da Nação, e, como tais, a extração de espécimes fósseis depende de autorização prévia e fiscalização do Departamento Nacional da Produção Mineral, do Ministério da Agricultura. Parágrafo Único. Independem dessa autorização e fiscalização as explorações de depósitos fossilíferos feitas por museus nacionais e estaduais, e estabelecimentos oficiais congêneres, devendo, nesse caso, houver prévia comunicação ao Departamento Nacional da Produção Mineral.”

 

Desse modo, os fósseis são, sim, bens da União por força do art. 20, inc. I da CF/88, eis que já lhe pertenciam à época da edição da carta magna. Esse é também o pensamento de Frederico Munia Machado , para quem “se os fósseis já pertenciam à União em razão do disposto no caput do artigo 1º do Decreto-Lei nº 4146/42, há que se reconhecer que, pelo artigo 20, inciso I, da Constituição Federal, esses bens permanecem integrando o patrimônio federal, apesar de inexistir referência constitucional específica nesse sentido”.

 

Todavia, deve-se estudar e aclarar algumas ideias que giram em torno desse raciocínio. A primeira delas diz respeito à recepção constitucional do Decreto-Lei nº 4146/1942. A segunda diz respeito ao alcance das expressões “depósito fossilíferos” e “nação” constantes do Decreto- Lei em comento.

 

Michel Temer informa que “a constituição nova recebe a ordem normativa que surgiu sob o império de Constituições anteriores se com ela for compatível. É o fenômeno da recepção, que se destina a dar continuidade às relações sociais sem necessidade de nova, custosa, difícil e quase impossível manifestação legislativa ordinária. Ressalte-se, porém, que a nova ordem constitucional recepciona os instrumentos normativos anteriores dando-lhes novo fundamento de validade e, muitas vezes, nova roupagem.”

 

Diante disso, verifica-se que a norma contida no Decreto-Lei nº 4146/1942 permanece vigente e eficaz.

 

A expressão “depósitos fossilíferos”, por seu turno, se refere aos depósitos de fósseis, por dedução lingüística e lógica. O conceito técnico também nos fornece a mesma informação, que foi colhido do texto de Frederico Munia Machado9: “depósito fossilífero pode ser definido, em linhas gerais, como qualquer sistema natural que contenha um ou mais fósseis... Engloba, ainda, os sítios paleontológicos que, resumidamente, correspondem a depósitos fossilíferos de relevância científica, histórica, educativa ou cultural”.

 

Por fim, dúvidas surgem quanto ao uso da expressão “nação” pelo Decreto-Lei 4146/42. A norma realmente se referiu à União ao falar em nação?

 

Para esclarecer a questão, nos socorremos da Carta Aberta aos Constituintes - 1º Turno, apresentada por Associações de imprensa, de geólogos e de entidades de mineração à Assembléia Constituinte. Desse texto, é possível observar uma preocupação em corrigir imprecisões contidas em leis anteriores, que, sob a égide da Constituição de 1934, traziam a expressão “Nação” para designar os bens da União. O documento esclarece que o uso da expressão “Nação” ocorreu por um “lapso do legislador de 34” e solicita a correção da impropriedade, senão vejamos:

 

“O Código de Minas, baixado no mesmo ano de 1934, estabelecia que as jazidas desconhecidas, depois de descobertas, seriam incorporadas ao patrimônio da Nação, como “propriedade imprescritível e inalienável.” Esse princípio foi mais tarde aperfeiçoado, por meio do Código de Minas de 1940, que determinava que as jazidas não manifestadas até a data da sua promulgação seriam incorporadas ao patrimônio da União. O Código de Minas de 40 reiterava, assim, o mesmo princípio, mas substituía a palavra Nação da antiga lei mineral por União, corrigindo, dessa forma, o lapso do legislador de 34. O silêncio da Constituição quanto à titularidade dos recursos minerais não interessa ao povo brasileiro, uma vez que criaria

 

condições propícias à arguição de teses contrárias aos objetivos econômicos e sociais do País. Fixar, por outro lado, a Nação como titular desses recursos seria, da mesma forma, permitir que interesses diversos daqueles comprometidos com o desenvolvimento brasileiro encontrassem nessa maliciosa impropriedade o terreno fértil de que necessitam para levar adiante seus planos. (...) Os bens minerais pertencem, na realidade, a todos os brasileiros e a sua exploração deve estar sempre voltada para os legítimos interesses nacionais e para as prioridades do desenvolvimento socioeconômico do país.”

 

Assim, como explica Frederico Munia Machado, “a utilização da palavra “Nação” decorre, novamente, de uma imprecisão ou um lapso do legislador constituinte, e não de uma atitude proposital de excluir os fósseis do domínio da União. Aliás, ainda que se quisesse atribuir o domínio dos fósseis à Nação, isso não poderia ser feito, pois ao contrário da União, a Nação não tem personalidade jurídica nem patrimônio próprios. (...) “o direito de propriedade” exercido pela União sobre os fósseis não possui acepção tradicional, civilista, mas se trata de um direito decorrente da soberania do Estado, voltado para uma finalidade pública e não patrimonial. Portanto, os fósseis pertencem ao povo brasileiro e a União exerce tão somente soberania sobre eles, como, aliás, sempre o fez”.

 

Nesse panorama, a palavra “Nação”, aparentemente, foi inserida no Decreto-Lei nº 4146/1942 com o intuito de dar o caráter de bem pertencente ao povo brasileiro e imprimir sentimentos nacionalistas no texto. Isto porque o termo “Nação” vem sendo explorado desde o século XVIII, em razão de sua “forte conotação emocional” e como “símbolo de unidade popular, tanto para obter do povo, por via emocional, sua adesão à luta contra o absolutismo, quanto para a institucionalização de lideranças”12. No entanto, a impropriedade não é capaz de infirmar a ideia de que os depósitos fossilíferos são bens da União.

 

Conclusões.

Da interpretação sistemática do art. 2º da Lei nº 8.176/91, do art. 20, inc. I e art. 216, V da CF/88, dos arts. 3º, 4º e 10 do Decreto-Lei nº 227/1967 e art. 1º Decreto-Lei nº 4146/1942, conclui-se que as condutas de exploração, transporte e comércio de fósseis sem autorização ou em desacordo com a autorização obtida encontram adequação típica no art. 2º caput e parágrafo 1º da Lei nº 8.176/91, c/c art. 20, I da CF/88.

 

Ademais, o mau uso ou conservação de material fossilífero (ainda que autorizado) que importe na sua deterioração, destruição ou inutilização, pode ser classificado como crime previsto no art. 62 da Lei 9.605/98 (“Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;”). E, não sendo autorizada exploração que resultou em deterioração ou destruição de fósseis, restará caracterizada a prática de dois tipos penais em concurso formal: art. 2º, par. 1º da Lei 8.176/91 e art. 62 da Lei nº 9.605/98. Com efeito, haverá o concurso formal entre os crimes, uma vez que cada qual se destina à tutela de bens jurídicos diversos: patrimônio da União e meio ambiente, respectivamente.

 

Por outro lado, a exploração de fósseis somente é possível para fins científicos e culturais, mediante prévia autorização do DNPM. Diante disso, o tráfico internacional de fósseis nacionais, atividade extremamente lucrativa nos Estados Unidos e Europa, encontra capitulação penal no art. 334 – A do Código Penal.

 

Por todo o exposto, a exploração, o comércio e o tráfico internacional de fósseis constituem, sim, crime no nosso país.

 

*Andréa Karine Assunção é delegada de polícia federal.


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